quarta-feira, 21 de março de 2007

mais canetas



Tinha gosto por recados. Morava sozinho e tudo o que precisava fazer, tudo o que precisava lembrar, deixava anotado em folhinhas espalhadas pelo apartamento. Não que fosse uma necessidade, já que tinha ótima memória, mas gostava fazer suas anotações. Era como um diário ou, melhor, uma pessoa que dividia a moradia e a vida com ele. Seu cúmplice de todos os dias e de seus acontecimentos sem graça.
À noite, quando chegava da rua, lia todos os recados, jogava-os fora e escrevia outros - todos inúteis e indignos de serem transcritos. Uma vez ou outra tinha espasmos de sair daquela rotina e escrevia belos bilhetes, com imagens de um mundo que não conhecia, mas sabia retratar. Alguns dias apareciam recados tão sentimentais que lhe davam a impressão de que não fora ele quem os escrevera.
Perguntou a si mesmo se não haveria realmente alguém dividindo o apartamento com ele.
E foi nesse momento que começou a responder seus bilhetes. Escrevia numa folha amarela sobre o trabalho e numa azul dava conselhos de como se comportar com os colegas de trabalho – que o detestavam. Escrevia sobre as notícias do telejornal e respondia com ataques a sua apatia diante das questões que incomodavam o mundo. Começou a brigar através das folhinhas coloridas. Chegou a pensar na morte. Não, não na dele, na daquele que vivia nos recados. Aquele que lhe dava idéias bobas, que queria amolecer seu coração e abrir seus olhos para o que se passava além do elevador do seu prédio. Passou a rasgar os bilhetes do outro. Continuava escrevendo e se afligindo, depois picava tudo e via os pedaços de papel indo embora com a descarga do banheiro.
Não tinha jeito, não conseguia se desligar das folhinhas. E começou a notar que mudanças aconteceram. Se pegava conversando com estranhos no ônibus, fazendo 'festinha' no cachorro do vizinho, saindo para tomar cerveja com o pessoal do trabalho, cantando as moças na praça... Praça? Antes do outro, nem à praça ele ia. Não ia ao cinema, não gostava de crianças, nem ao menos assoviar ele sabia.
Viveu numa redoma até que o outro começou a operar uma transformação na sua cabeça. E a transformação foi tamanha que, certo dia, declarou-se apaixonado. Apaixonado por aquele outro que vivia nos bilhetes e dentro dele. As folhinhas, as vermelhas, foram recebendo recados cada vez mais passionais. Ele não via saída para aquela situação; o que fazer para livrar-se de si mesmo? Resolveu que precisava silenciar sua voz – e jogar fora suas canetas.

13 comentários:

Mariana R disse...

Nó... adorei! Lembrou o Orla do Guy de Maupassant e a minha Luma... bom bom mesmo! Essa quintal tá que tá!!!

Anônimo disse...

Que coisa mais linda!

Anônimo disse...

Tá parecendo um Teatro do Pedro Cardoso que assiti no Rio ( O Autofalante), um monólogo...rsrsrs
Acho que ele copiou de você..hehehehe

Caetana disse...

Conheci um cara assim. Mas esse era esquizofrênico mesmo. Mudava até a letra. Era um colega do 2o grau que cantava no coral da escola. Um dia descobrimos que ele também falava no telefone sem ter ninguém do outro lado. Parecia mesmo que ele estava conversando com alguém. Era muito esquisito. Ele não morava sozinho. Era filho único e morava com os pais. Só conheci a mãe, que nos confirmou que ele conversava com pessoa imaginárias e contava coisas que não tinham acontecido, mas ele tinha certeza que era tudo verdadeiro. Nada tão bonito como o que Pisquila escreveu.Depois que eu descobri, era de dar medo.

Carpe Diem disse...

caraca, mto bommmmmm!!!!!Parece comigo, qdo estou conversando com meu caderninho. é um canal para autoconhecimento, com ou sem hífen kkkkkkkk

Esperando Godot... disse...

Isso me lembrou Feriado de Mim Mesmo, um livro do Santiago Nazarian. Um escritor de uma nova geração que escreve como roteiristas. Cheguei até a fazer a adaptação do livro pra uma cena, mas nao concretizei. Taí, Ana, podia escrever uma cena pra mim, né????

Lidia disse...

Tá pedindo a cena pra Ana, mas viu que o post é meu, né? rs rs

Mariana R disse...

Achou tão bom que não podia ser seu lidita... kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!!!!
brincandinho...

Lidia disse...

Poxa...

Esperando Godot... disse...

ai, lídia! vi o título e já logo pensei q fosse da ana. refaço, então, a proposta: escreve uma cena pra mim, escreve???
presente de aniversário????

Lidia disse...

Nunca escrevi cena... Não sei como se faz.

Valéria Barros Nunes disse...

eu faço cena
mesmo sem escrita prévia
acho q o exercício d ecriatividade aqui iniciado pode variar por aí
bom, né?

Esperando Godot... disse...

Arrisca, oras!