domingo, 27 de janeiro de 2008

Beco da Lama

Estou no Beco da Lama, em Natal. Venho sempre aqui, encontro os amigos, bebo, converso, fico alegre. Bares, barracas, churrasquinho, cerveja, cachaça, papo animado. Música. Gente boa.

Aos poucos, fica-se mais feliz, fala-se mais, a conversa quase aos gritos, rio-me. A noite está boa, promete. Tenho 45 anos, uso um macaquinho de brim, camiseta, sandália rasteira, o cabelo solto, apesar do vento. Gosto de soltá-los, são crespos e longos, chegam até o meio das costas. Estou bonita.

Os homens começam uma conversa engraçada sobre a mulher que foi assassinada na Redinha. Traía o marido. Ele a esfaqueou, foi notícia nos jornais. Eles se riem, dizem que o corno não era manso. Rio-me também.

Estamos bem no meio do beco, na calçada do bar mais freqüentado. Na outra esquina, vejo o menino. Ele se aproxima. Parece uma criança, mas já tem quase 30 anos. Negro, o cabelo quase raspado, magro, bermudas e chinelo. Ele vem para a mesa, já sei. Conhece todo mundo. Não me importo. Estamos em festa. Estou no bar.

Na mesa, todos alegres. O menino também. Está tudo bem, é uma noite gostosa. Ele já chegou bêbado. Eu não estou menos, aqui já há tanto tempo. Ele me afronta. Não sei para que, não me incomodo.

O menino insiste na provocação. Ele me irrita. E me ofende. Vou para cima dele, não levo desaforo. Quem tu tá achando que é, infeliz? Pensa que tá falando com quem? Ele responde com risadas, parece aéreo. Ri-se. E me chama de noiada.

Furiosa, afronto-o, quem tu tá chamando de noiada, seu. bosta? Ele continua achando graça, isso me enfurece mais. Saio de onde estou, rodeio a mesa e chego até ele. Que é que tu tá falando? Meto-lhe a mão na cara, ele se esquiva, rindo-se.

Os outros da mesa se levantam, tentam me acalmar, põem-se entre mim e o menino. Não quero saber, desvio-me deles, quero alcançá-lo. Avanço sobre ele. Sem parar de rir, levanta-se, foge, mas não deixa o bar, rodeia a mesa, eu o sigo. Um neguinho desses me chamar de noiada? “Ué, se fosse branquinho, podia?” A frase vem de uma mulher gorda, com cara de turista, na mesa ao lado. Olho-a, por alguns segundos, fixa e duramente. Fuzilo-a. Ela se retrai, desvia o olhar, abaixa a cabeça. Volto-me ao menino.

Vem cá, merda. Quero ver, agora. Corro atrás dele, os homens tentam me segurar. Ele entra no bar. Vou atrás. Na porta, há engradados cheios de garrafas vazias. Pego uma. Quero quebrá-la em sua cabeça. Mil braços envolvem meu corpo. Seguram-me de todas as maneiras, querem impedir-me. Deixa eu acabar com esse neguinho, quem é noiada, safado?

Com a garrafa na mão, o braço no ar, seguro por outras mãos, o menino lá dentro, sou puxada, empurrada, uma nuvem de gente em torno de mim, não o alcanço. Levam-me pra fora, aos gritos.

Tiram-no do bar, pedem-lhe que se vá. Ele não atende, continua pela calçada, rodeia as mesas, ri-se. Eu grito, ainda me seguram. Tu te lembra quando chegou aqui? Um neguinho, com fome, sem cueca, a bunda suja de bosta.

Com os movimentos que faço para me livrar dos braços que me prendem, meus cabelos, revoltos, entram pelo meu rosto, pela minha boca. Tiram a garrafa de minhas mãos, estou cansada, mas ainda quero alcançá-lo. Não me soltam. Grito. Tu é um fudido, dormia na rua, o cara comia teu cu, aqui na calçada. Eu que te levei pra casa, te dei banho, te dei comida. Tu vem me chamar de noiada? Vem cá pra ver se tu é homem.

Alguns homens vão até ele. Pegam-no pelo braço, levam-no, dobram a esquina do beco, desaparecem. Soltam-me, ajeito os cabelos, volto à mesa. A garçonete traz mais uma cerveja. Sento-me, olho em volta. Ninguém se abala, tudo como dantes. Em suas mesas, freqüentadores bebem, conversam, a música toca. Rio-me. A turista foi embora.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O verão termina após o carnaval?

Janeiro em Soterópolis. Do ônibus que atravessa a Orla da cidade, avisto duas dezenas de outdoors anunciando o verão: “Ensaio da Banda AEIOU”, “Camarote da Grande Estrela do Carnaval”, “Feijoada VIP da Baiana-Cheia-de-Graça”. Um deles desafia: “O seu verão acaba com o carnaval?”. Próxima parada. Sob o sol escaldante de 8:00 da manhã, algumas pessoas tentam se proteger na sombra de um poste, formando um ângulo de 45º. Esperam o famoso “buzú” ou “humilhante” para mais um dia de trabalho. Lembro da reportagem da TV: o baiano é um povo muito alegre. Ah! Este sol, este mar! Com uma vista dessa, não tem como ficar mal-humorado...
Uma mulata vistosa, de 1,60 de altura, cintura fina, quadris largos, bunda grande e pouca roupa, adentra o coletivo. Ao meu lado, dois homens, um jovem negro e o outro branco de meia idade, curvam o pescoço examinando todos os detalhes. Ouço a conversa: - “Posso te arrumar uma deste jeito aí”. Diz o jovem ao homem, que, de boca aberta e olhos arregalados, apenas balança a cabeça. Os dólares dos gringos movimentam a economia da cidade no verão. Eles vêm em busca do Sol, da Alegria, e também de Mulheres, Mulherinhas que mal saíram da infância. Alguma novidade? Acontece todos os anos. Quase não dá nos jornais. A grande notícia do dia é a polêmica sobre a escolha do Rei Momo. Muito magro! É marmelada!
Enfim chego ao meu destino, desço do coletivo e sigo em direção ao Porto da Barra. Encontro amigos. Praia lotada. Banho de mar delicioso. Na areia, disputamos espaço com cadeiras de praia, vendedores ambulantes, jogadores de frescobol, celebridades e catadores de latinha. Peço cerveja a um rapaz que recolhe cadeiras para alugar. Ele solta um riso nervoso e responde: - “Não vendo cerveja, moça. Sou burro de carga. Onde tem trabalho pesado, eu estou”. Penso no mito da preguiça baiana. Lanço a mim mesma o desafio do outdoor: o verão deste rapaz termina com o carnaval? Não sei responder. Neste ano, ninguém quis ser cordeiro*.





* São chamados de “cordeiros” os homens e mulheres que recebem R$ 20 por dia para empurrar as grandes cordas que separam os foliões de Blocos dos outros foliões (“pipoca”), no carnaval de Salvador.

sábado, 12 de janeiro de 2008

De novo

Acabou, está acabando.
Família, amigos, Campão. A cidade está linda, talvez não saia nunca mais daqui. Morrerei velhinha, andando pelas calçadas sujas do centro e reclamando do trânsito. Mas as calçadas são limpas, e o trânsito, muito melhor que o de vários lugares por onde andei. Dirijo pelas ruas e vejo que são pequenas, pequena é a cidade, pequenina Campo Grande. Era enorme, antes.
As cidades são como os sonhos, e sonhos, sonhos são. Por mais intrincados que sejam seus caminhos, quem sonha sabe aonde vão dar. Mas isso é plágio de Calvino, misturado com letra de Chico. Música de Tom é casa de Oscar; poema de Chico é casa minha.
Amanhã, os amigos fazem festa. Despedida pra mim. De novo. Despedida de Brasília, despedida de Campo Grande. Outra festa pra eu rir, outra festa pra eu chorar, outra festa pra eu me embriagar. Embebedar-me de amigos, para vê-los partindo, um a um, da casa, do bar, sem saber quando e se vou encontrá-los de novo. Sentir os mesmos cheiros, ouvir as mesmas vozes, rir das mesmas piadas batidas, discutir as mesmas divergências insolúveis, fazer as mesmas chacotas, chamar pelos apelidos, abraçar emocionadamente, fingindo que não é nada, não é nada, não é nada, não sou piegas, não vou chorar. E para que me vejam partir. Hora de ir embora, quando o corpo quer ficar. Chico de novo, nada original. Eu, não ele.
E lá, do outro lado do mundo, do lado de lá da montanha, que a gente não conhece, por isso deseja, a cidade nova que me espera. Eu a espero. Um amor novo, que não deu certo. Amores dão certo? Um outro e novo amor, que desejo dê certo. Amores dão certo? Ele escreveu, ele escreveu. Escreverá amanhã? Ele telefonou, telefonará depois? Não sei, é outro, é novo, muito novo, talvez dê certo. Amores dão certo? Será diferente do anterior, tão recente, tão infeliz? Será. Amores dão certo.
Tenho de escrever. O conto do aeroporto. A crônica do beco de Natal. Um artigo científico. A edição de um livro cujo prazo expira breve. Um medo, de novo, medo velho, de modo novo. Já não sei o que penso, não sei o que escrevo, não sou de escrever assim. Amanhã, apago esta porcaria.
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Direto de Campo Grande para o Quintal. Também está no meu blogfúndio, claro.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

uma questão que me persegue


Passados mais de dois anos que estou em Brasília, toda vez que volto de Florianópolis ainda me ocorre o seguinte questionamento:
Não havia, décadas atrás, nenhum lugarzinho perto do mar dando mole para se construir uma capital?