sexta-feira, 30 de março de 2007

O economista e o ornitorrinco

Um dia, eu li num livro que saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue.

Li também que vontade é um desejo que cisma que você é a casa dele. Acho que li também que o reencontro é quando senta do seu lado alguém que sempre esteve dentro de você.

Será que li mesmo tudo isso? Ah, li sim. Se tava escrito eu não sei... mas eu li, ah, isso sim. Li sim.
Tenho certeza. Certeza igual a que eu tenho agora... que se eu cair dessa corda...
Não vai acontecer nada comigo! Viram? Nada. Sabem por quê? Porque essa corda não existe.
Você acreditava na corda?
Tadinho. Pobre de quem acreditava. Pobre de quem não acredita.

Agora, por exemplo, olha ali. É ele mesmo. O ornitorrinco. Tem quatro patas, um bico e dentes quando pequeno. É peludo, mas as patas dianteiras são como asas. As traseiras tem esporões venenosos. Bota ovos, choca-os e depois amamenta os filhotes. Um estudioso ousou chamar essa criatura de animal horrível, feito com pedaços de outros animais. Já um senhor mais prudente insinuou que os outros animais é que são feitos de seus pedaçoes.

E olhem lá quem vem com ele, o economista... espécie singular. Esse sim muito complexo! Dever ser matamático, historiador, estadista, filósofo. Deve entender os símbolos e falar com palavras. Deve contemplar o particular nos termos genéricos e tocar o abstrato e o concreto na mesma revoada de pensamento. Deve estudar o presente à luz do passado com objetivos futuros. Ele deve ser decidido e desinteressado com a mesma disposição; tão distante e incorruptível quanto um artista e ainda assim algumas vezes tão perto da terra quanto um político.

E vejam vocês como brincam... o economista e o ornitorrinco. Você consegue vê-los bem ali? Consegue?

Você acredita em ornitorrincos? Ou você só acredita no que vê?

Tudo bem! Você... tá vendo esse cara aqui, não tá? E só por isso você acredita nele? Ô... eu não arriscaria...

Tá, então vamos imaginar que você tem um amigo que vai embora, que vai embora amanhã. E aí, o que você faz? Você senta na frente dele, olha nos olhos dele e consegue ver o tamanho da saudade qque vai chegar? Você consegue enxergar, consegue?

Eu consigo! E é por isso que eu só acredito no que eu vejo. Porque meus olhos insistem em enxergar a palavra desenhada, a corda bamba, onitorrincos, economistas, amigo que vai embora, saudade que fica e vontade do reencontro.

Calma, calma... mas fiquem tranqüilos! Não vai acontecer nada. Essa história, assim como a corda, não existe!

Cena escrita para o amigo Amauri que seria encenada no dia de seua festa de despedida. Ele foi embora e eu não encenei. Achei os escritos passando as folhas de um caderno. Não faz muito sentido assim, em duas dimensões, mas decidi plantar de qualquer forma, vai que vira árvore, né?

quinta-feira, 29 de março de 2007

Jorge

Tenho, queridos e queridas correspondentes, um compromisso com vocês: escrever meu romance “O Cortiço Revisitado”. No entanto, não encontro inspiração, principalmente porque não penso em outra coisa que não dívidas contraídas em momentos de total irresponsabilidade.

Peço-lhes as mais humildes desculpas por não ter cumprido a promessa. No entanto, tentarei sanar, pelo menos em parte, essa falha, por meio da descrição dos personagens da obra. Vamos por ordem de entrada no cortiço.

A primeira quitinete, ou apartamento, como insiste em dizer o proprietário, é ocupada por Jorge, funcionário de uma concessionária de automóveis na cidade-satélite. Jorge é branco, tem entre 35 e 40 anos, não mais, pele boa, cabelos curtos e lisos, brilhantes, muito negros, sem fios brancos. Bonito cabelo, assim como o dono, um belo homem, de estatura mediana, talvez uns 1,72m, não magro, cheinho, sem chegar a ser gordo. Em forma, para falar a verdade, já que caminha diariamente. Pernas grossas.

Jorge parece ter um bom cargo na concessionária e uma boa situação financeira. Sua quitinete, maior que as outras, está bem mobiliada, inclusive com uma boa cozinha, onde há itens como fogão, geladeira, forno de microondas e quetais. Ele também possui carro, um modelo recente, em excelente estado, turbinado e, aparentemente, com acessórios como aparelho de som, vidro elétrico e quejandos.

Vive sozinho e bem. Aos fins de semana, convida os outros moradores para uma cervejinha, almoços, jantares. Na verdade, duas moradoras do cortiço (que descreveremos mais tarde) fazem a comida, pois gostam muito dele. São de Minas Gerais, ele e elas, e se entendem bem. Nunca o vi trazer companhia diferente à quitinete.

Nos fins de semana, quando está com as amigas, tomando cerveja e preparando alguma comida, Jorge – que usa aparelho nos dentes e fala com a língua entre eles – gosta de ouvir música. De gosto eclético, tem, obviamente, suas preferências, entre elas, a versão original, em inglês, de "Festa no Apê", gravada no Brasil pelo cantor Latino. É uma das infalíveis, todos os sábados.

Descobri, num desses fins de semana com cerveja, que Jorge foi ator. Tentou até ser contratado por uma emissora de TV, já extinta, no Rio de Janeiro, onde residiu enquanto tentava a carreira artística. A conversa, no entanto, não evoluiu o suficiente para serem revelados os motivos da desistência de tal profissão e a mudança para Brasília.

Jorge se veste muito bem, excelentes calças, camisas e sapatos, arranjados entre si de maneira sóbria e formal, sem exageros. O cabelo curto e a roupa dão-lhe um ar viril só contrariado pela fala mole, a voz engasgada e os trejeitos com as mãos que costuma fazer quando arruma o cabelo. Bonito cabelo.

Apresentado o personagem, passaremos a chamá-lo, doravante, de Jorge, o viado.

Texto do período em que a autora viveu em Brasília. Registrava suas impressões da cidade em crônicas, por meio das quais mantinha correspondência com amigos e familiares. O original, manuscrito, foi encontrado nos escombros do (agora) célebre apartamento do SOF Norte, onde a autora se reunia com um grupo de amigas, com as quais fundou uma sociedade secreta de escritoras. Nessa época, iniciou sua obra-prima, “O Cortiço Revisitado”.

quarta-feira, 28 de março de 2007

extra! extra!

Ação entre amigas

As blogueiras do quintal de casa (http://quintal-de-casa.blogspot.com/) podem se considerar blogueiras de sucesso. Orientam-se pelo gosto de se expressar sobre tema qualquer e de qualquer maneira. Comentam e estimulam o trabalho umas das outras, trocam elogios, às vezes farpas discretas, outras nem tanto. Inegável que se trata de um blog ativo, "bostado" (como gostam de dizer as amigas) e comentado, na maioria das vezes por elas próprias. A metáfora escatológica, de fertilização do quintal, deve resultar em flores e hortaliças, graças ao bichinho da literatura que vez por outra vem picando (sic) as moças.

Eis, porém, que a solução se desdobra em problema, quando o veneno do tal bichinho passa a intervir na criação e no comentário. No universo literário, para algo ser bom, outros algos precisam ser ruins. Na expressão do mestre Antonio Candido, "é preciso muito estrume para que
nasça uma flor", e assim retornamos à metáfora escatológica do quintal. Mas entre amigos, em certo sentido, tudo "precisa" ser bom, mais por ser "de quem" que por ser o "que é". Daí a crítica velada nos comentários, expressa pelos comparativos (isso me lembra aquilo), pela mudança de assunto ou pelo simples silêncio. Afinal, julgamento dos mais cruéis é não merecer comentários.

Assim se desenrola a ação entre amigas, ora leve e despretensiosa, ora puramente jocosa, ora séria e intimista - o que acaba por ser um bom retrato do humor feminino. Se tiver continuidade e freqüência, o arquivo poderá resultar num rico retrato de uma amizade entre iguais (pois mulheres) diferentes (pois gerações e origens variadas). Fica porém o desafio de não se entregar à facilidade do chiste, nem à sedução das belas letras. Quem sabe, pensar com André Breton que "a
literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo".

Por: Marco Antônio Rino Rodrigues

terça-feira, 27 de março de 2007

Vestido cor-de-rosa

A funcionária desceu do ônibus e atravessou a rua. Rapidamente, subiu os três degraus que separavam a calçada do corredor da vila. Eram dez pequenos quartos, dispostos lado a lado. No fim do corredor, torneira e tanque coletivos. Além do pouco espaço, o barulho dos vizinhos era outro problema, mas aquela moradia era a mais barata que conseguira arrumar.

Desde adolescente morando sozinha na cidade, terminara o colegial já aos 22 anos. Prestara um concurso para um cartório e lá estava há dez anos. O serviço era enfadonho, mas estável. Não gostava de aventuras. O ambiente até que era bom. As colegas mostravam-se simpáticas. Todas casadas, falavam de marido e filhos durante quase todo o dia. Só ela se calava. Não se constrangia, entretanto.

Na verdade, o que mais a entristecia não era a falta de um marido ou de filhos, propriamente, mas a ausência de um grande amor. Era o que pensava, ao menos. Por isso, não invejava as companheiras. Elas tinham marido, mas não via nelas indícios de paixões devastadoras.

As fantasias românticas tomavam todo seu tempo livre. Quando não estava no trabalho, estava em seu quarto lendo algum livro. Geralmente lia romances açucarados, cujos autores ela julgava estadunidenses. Os amores e desventuras das heroínas fascinavam-na. Costumava imaginar-se no lugar delas. Demorava-se nas passagens que descreviam as roupas dos personagens, principalmente em festas. Fixava-se nos detalhes e reproduzia mentalmente os vestidos descritos. Pensava em si mesma vestida daquela maneira.

Naquela noite, após chegar do trabalho, pegou avidamente o romance que começara na véspera. Colocou um cinzeiro no braço da pequena poltrona que havia no quarto e começou a ler.

O iate luxuoso, as jóias reluzentes, a decoração suntuosa, tudo que o romance barato descrevia fazia parte de seu mundo então. Ao som de uma orquestra, os casais dançavam, inebriados. Num instante, via-se como a heroína da história, num vestido cor-de-rosa. Vestido e cabelo esvoaçavam ao vento. Deliciava-se a cada palavra do herói, que, sobre a proa do navio, tomava-lhe as pontas do vestido nas mãos. Tecido e pessoa eram um só ser, sentia-se diáfana.

Sem querer, esbarrou no cinzeiro, que caiu ao chão, espalhando cinzas sobre um par de calças compridas brancas meticulosamente dobrado sobre uma almofada. O incidente arrancou-a ao devaneio.

Fechou o livro, pegou as calças e as espanejou delicadamente com as costas da mão para que as cinzas caíssem sem manchá-las. Era a única roupa disponível para o dia seguinte. Prometeu a si mesma que compraria algumas peças de roupa com o próximo salário.

Depositou as calças agora sobre as costas da poltrona e novamente abriu o livro. Voltou à leitura, mas não ao sonho. A imagem das calças misturava-se à dos vestidos. Não conseguia sequer fixar-se no enredo. Pensou na repartição. Papéis e carimbos tomavam o lugar dos olhares e sussurros enamorados. Lembrou-se de um processo cujo andamento estava atrasado. Precisava concluí-lo o quanto antes.

Deitou-se já sem sonhos e dormiu logo. Raro ter insônia. No dia seguinte, acordou mais cedo que de costume. Preparou café e o tomou lentamente enquanto fumava um cigarro. Vestiu-se e saiu à rua. Logo subiu no ônibus e chegou ao local de trabalho.

Sobre a mesa, o processo atrasado. Tinha quatro volumes e estava empilhado a um canto. Sentou-se e começou a folheá-lo. Quando estendeu a mão para pegar um carimbo, derrubou um tubo de tinta azul sobre o colo. Dessa vez o estrago foi irreversível. As pernas das calças mancharam-se de azul. Malditas calças brancas. Jurou que da próxima vez compraria calças jeans.

segunda-feira, 26 de março de 2007

É assim, simples...

Os astros decidem, pré-escrevem, a gente vira só um brinquedo do destino. D másculo. Um presente do divino. D másculo, de novo. Como começa esta história, não sei. Falta-me conhecimento para entender o que vem primeiro: o desejo ou o destino? Fui eu quem desejou assim? A idéia foi concebida por mim? Fui eu quem fiz acontecer assim? Aí, simples, assim, um dia eu ouço dizer que existe alguém no mundo que não tem frescuras nos modos. Vou ver, acho um homem nobre nas atitudes. Adoro atitudes nobres, adoro delicadeza e mansidão. Chega em minha casa, dou-lhe licença, pode entrar, preciso de ajuda, mas é perigoso. Você tem fogo? Assim, simples e direto. O mundo simbólico é assim, tem fogo? Então, me tira dessa virgindade madura, grudenta, apática. Vem, me põe nua, sem mentira, com língua! Vem, encosta, quente, doce, macio! Assim, simples, nem precisa falar, é só sentir e perceber que é bom ficar quieto juntos, fazer nada na tarde modorrenta e morrer de delícia no calor do fogo brando. Simples assim, nos olhamos e vimos nossa saudade de um tempo caseiro, latido de cães, passarinhos em algazarra, lava-pés na bacia, viagem de carro na madrugada, recolhe o rabo e fecha a porta. Vimos nosso deleite no cheiro de criança morna, fresca como pão, na cama de manhã, se abrindo em sol. Vimos o êxtase da alvorada, nus, na soleira do verde quintal. Simples assim. Café, pão, manteiga, fruta fresca e jornal. Notícias do que fomos, confidências do que somos. Uma intimidade a céu aberto, solta nas águas termominerais. Simples assim. É só chamar que eu vou. Fico bem perto, sem problema, sem reclamação, sem rebeldia, sem palavrão, sem resistência de oposição. Vou fluindo, me sentindo bem, à vontade para ser o que ainda não fui sem me perder de mim. Aprender o que não aprendi, talvez seja a lição que resta neste fim de festa. Simples.

sexta-feira, 23 de março de 2007



Lembra dos bancos coloridos da pré-escola? E do parquinho? Tinha um parquinho, claro. E um menino que jogava areia nos outros colegas. Tinha uma tia, ou duas. Uma era boazinha, protegia, a outra deixava todo mundo de castigo, uma Raquel da vida. Na saída, vinha a kombi nos buscar. E aí era aquela briga: as meninas queriam ir na frente com o tio que dirigia e os guris disputavam o último banco, aquele mais alto no fundão. Todos instalados, um puxava o coro das musiquinhas que só os mais velhos entendiam (será que entendiam?) : “Entrei no ônibus / esbarrei na manivela / cobrador filho da puta / me jogou pela janela” - O que é 'filhadaputa'?, perguntava depois em casa. O engraçado é que não perguntava o que era 'manivela'. Sempre tinha um que trancava os dedos na porta da kombi. E sempre tinha um que o tio esquecia de entregar: “Ô, Cleber! Tu ainda taí? Onde é que tu moras mesmo?”. E quando a kombi estragava e o tio socava a piazada toda na Belina dele? Ô, diversão! Diversão também era festa junina. Na escola e em casa, festa junina de aniversário. Neguinho queimava os fundilhos pulando fogueira no quintal de terra, comia pinhão, pipoca e amendoim, dançava quadrilha e tomava quentão, que um adulto dava e outro confiscava. Cada vez que sinto cheiro de quentão (de vinho, é claro, que esse troço com cachaça na minha terra não existe), lembro da minha infância na casa do Roçado – bairro de São José, cidade vizinha de Florianópolis. Lembro do abacateiro enorme que tinha no quintal, onde a gente amarrava uma corda e se pendurava. Os irmãos me empurravam e eu parecia que ia voar. Voava mesmo, até. Qual criança não voa? Até que provem o contrário, eu voei o suficiente para dar umas três voltas ao mundo.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Prazer em conhecer


Já se conheciam. Entre uma das muitas vezes em que os reapresentaram (as pessoas sempre achavam que eles ainda não se conheciam), trocaram cartões de visita. Na verdade, já tinham sido apresentados um ao outro algumas vezes, mas não tinha passado do "Muito prazer" "O prazer é meu". Assim continuaram sendo reapresentados pelas pessoas que, inimaginavelmente, eram comuns a ambas as vidas. Por um período trabalharam na mesma instituição. Setores diferentes. Já haviam transado algumas vezes. Mas, continuavam a ser, ocasionalmente, apresentados um ao outro pelos colegas. De vez em quando alguém dizia “Cara! Tenho que te apresentar fulana. Ela tem tudo a ver contigo”. E, no boteco, quando ela chegava, o tal amigo os apresentava novamente. A resposta continuava a mesma, porém agora, de vez em quando, escapava um sorrisinho depois do infalível "Muito prazer" "O prazer é meu". Já ia nascer o filho. Resolveram não morar junto. Ela pediu licença do trabalho, entrou clandestina na Irlanda onde ficou até bem perto do final dessa história. Ele mudou de profissão. Abriu um ateliê de construção de móveis, depois uma pousada no litoral do Espírito Santo, depois uma lan house, depois isso e aquilo. Na banca de jornais da vizinhança ela esbarrou em um sujeito que tinha lá seu charme. Depois do lanche na carrocinha de cachorro quente em frente à banca, enfim, se apresentaram.

Vitrine


O cinema de semana passada foi o entorpecente para aliviar o que sinto, as indecisões, as ilusões. Preciso ficar comigo! Preciso chorar e muito! E não precisa de um porque. É só soltar. E eu tenho esse direito!

Não quero ser outra vez usada. Não quero me sentir apenas Carne, uma peça exposta na vitrine do açougueiro e ser comida como a refeição de final de semana.

Enquanto isso, assisto "A Casa do Lago", os malabares, os saltos triplos e os tecidos coloridos do circo noturno...

março 2006

quarta-feira, 21 de março de 2007

mais canetas



Tinha gosto por recados. Morava sozinho e tudo o que precisava fazer, tudo o que precisava lembrar, deixava anotado em folhinhas espalhadas pelo apartamento. Não que fosse uma necessidade, já que tinha ótima memória, mas gostava fazer suas anotações. Era como um diário ou, melhor, uma pessoa que dividia a moradia e a vida com ele. Seu cúmplice de todos os dias e de seus acontecimentos sem graça.
À noite, quando chegava da rua, lia todos os recados, jogava-os fora e escrevia outros - todos inúteis e indignos de serem transcritos. Uma vez ou outra tinha espasmos de sair daquela rotina e escrevia belos bilhetes, com imagens de um mundo que não conhecia, mas sabia retratar. Alguns dias apareciam recados tão sentimentais que lhe davam a impressão de que não fora ele quem os escrevera.
Perguntou a si mesmo se não haveria realmente alguém dividindo o apartamento com ele.
E foi nesse momento que começou a responder seus bilhetes. Escrevia numa folha amarela sobre o trabalho e numa azul dava conselhos de como se comportar com os colegas de trabalho – que o detestavam. Escrevia sobre as notícias do telejornal e respondia com ataques a sua apatia diante das questões que incomodavam o mundo. Começou a brigar através das folhinhas coloridas. Chegou a pensar na morte. Não, não na dele, na daquele que vivia nos recados. Aquele que lhe dava idéias bobas, que queria amolecer seu coração e abrir seus olhos para o que se passava além do elevador do seu prédio. Passou a rasgar os bilhetes do outro. Continuava escrevendo e se afligindo, depois picava tudo e via os pedaços de papel indo embora com a descarga do banheiro.
Não tinha jeito, não conseguia se desligar das folhinhas. E começou a notar que mudanças aconteceram. Se pegava conversando com estranhos no ônibus, fazendo 'festinha' no cachorro do vizinho, saindo para tomar cerveja com o pessoal do trabalho, cantando as moças na praça... Praça? Antes do outro, nem à praça ele ia. Não ia ao cinema, não gostava de crianças, nem ao menos assoviar ele sabia.
Viveu numa redoma até que o outro começou a operar uma transformação na sua cabeça. E a transformação foi tamanha que, certo dia, declarou-se apaixonado. Apaixonado por aquele outro que vivia nos bilhetes e dentro dele. As folhinhas, as vermelhas, foram recebendo recados cada vez mais passionais. Ele não via saída para aquela situação; o que fazer para livrar-se de si mesmo? Resolveu que precisava silenciar sua voz – e jogar fora suas canetas.

Um pecado capital

Tenho passado os últimos tempos com um desejo senão estranho, um tanto quanto peculiar: arrebata-me diariamente a vontade de engolir o mundo. Para meu azar, digo isso sem nenhuma força de expressão ou figura de linguagem. O desejo é de comer mesmo, mastigar bem e sentir o mundo inteiro passar pelo meu trato intestinal.
No começo, não era nada assim de chamar atenção. Coisas miudinhas, pequeninas, que qualquer um engole: lápis, grampo, colar. Nada grave. Achei que passasse rápido.
Dei por conta que a coisa piorava há 3 semanas, quando inesperadamente senti uma salivação excessiva em conversa ao telefone. O fato nada se relacionava com o receptor da mensagem, mas com o próprio canal. Então, sem nem ao menos despedir do meu interlocutor, comi o telefone. Satisfação imediata e episódio esquecido, ou melhor, quase esquecido. Tive de retomá-lo na compra no novo aparelho, no dia seguinte. Foi inevitável solicitar à atendente o modelo menos apetitoso disponível.
Passados 2 dias, novo indício da minha gula mundial. Dessa vez, foi a rede pendurada na minha varanda. Foi quase uma refeição, utilizei guarfo e faca e fiz questão das 32 mastigadas. O prazer foi tanto que pensei que seria a última coisa a engolir na vida. Ilusão a minha! Ainda no tempo sugerido para sobremesa, pulou na minha frente um jogo completo de xadrez. Torres, cavalos, reis, rainhas, peões... todos de uma vez só.
Desde então, confesso que desconheço a saciedade. Preocupei-me muito no príncipio. Agora, estou mais tranqüila, bem mais tranqüila. Sei, por exemplo, que o que sinto não é fome. É puro desejo, capricho bem tinhoso, gula mesmo. Isso me deixou mais aliviada, bem mais aliviada. Sei também que a vontade não é pela coisa em si, é pela sua existência. Só como, então, a realidade. Nossa! Isso me deixou contente, muito contente. Por fim, descobri que faço a digestão de quase tudo, mesmo que demore um tempo maior do que o esperado. Ah, isso me deu mais prazer ainda de comer o mundo!

segunda-feira, 19 de março de 2007

Memórias de uma foca

Capítulo I

Tudo começou em 1995. Começar com tudo começou é horrível, mas como é uma foca que escreve, perdoa-me, caro leitor. Caro leitor tampouco é expressão jornalística – é coisa de Machado de Assis. E tem outro inconveniente: a dupla pretensão. A primeira é achar que terei leitor; a segunda, usar coisa de Machado de Assis.

Mas continuemos. Para uma principiante, eu já estava bem velhinha. Como nasci em 64, contava na época com 30 anos. Não te apresses em fazer contas, leitor. Sou de dezembro. Os fatos da narrativa se iniciam em abril, portanto, faltavam oito meses para 31. Vá lá: 30 anos e quatro meses, se queres exatidão. De todo jeito, balzaca.

Pois bem. Nesse malfadado ano, meu amigo Oscar – jornalista, formado, com diploma e carteirinha – chamou-me para trabalhar num semanário de que era editor. Ainda não expliquei que sou formada em Letras, pelas gloriosas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (hoje Universidade Católica Dom Bosco), e até então só havia cursado um semestre de Comunicação Social na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mesmo assim, Oscar insistiu em me levar para seu jornal.

Devo abrir parênteses aqui para confessar que esse meu amigo era encantado com minha capacidade intelectual. Sim, é verdade. Não penses que o encanto era devido a outros dotes, talvez mais palpáveis, que eu possa ter. Oscar não é disso. E também meus atributos físicos não são lá essas coisas. O verdadeiro fascínio que Oscar tinha por meu potencial – repito, intelectual – derivava basicamente de dois fatores.

O primeiro era a total falta de intimidade que ele mantinha com a língua portuguesa. Tão inculto quanto, mas não tão belo, meu amigo era alérgico à gramática da última flor do Lácio. Os longos e difíceis anos de convivência não foram suficientes para o convencer de que a crase é um fenômeno, não um acento gráfico, que não ocorre diante de palavras masculinas e verbos, já que não vêm precedidos por artigo definido feminino. Tocar no assunto empipocava-lhe o corpo. Meus conhecimentos morfológicos, sintáticos e ortográficos, então, assumiam, diante de seus olhos, grandiosidade que não têm.

O outro motivo, menos honroso, que fazia com que meus textos de comportada correção e nenhuma ousadia formal lhe parecessem pérolas era minha arrogância quase sem precedentes na história da humanidade. Eu adorava lhe explicar questões de gramática de uma maneira pedante o suficiente para ninguém entender, quanto mais ele, que já não se dava bem com o assunto.

Por conta disso, considerando que eu era um expoente da arte de escrever, Oscar levou-me para o tal hebdomadário – além de incompreensíveis explicações gramaticais, eu também era dada a palavras inusuais do vernáculo. Foi assim que iniciei minha vida de foca, cujos episódios passo a lhe narrar, caro(a) leitor(a). Agora, com a inclusão politicamente correta do gênero feminino no vocativo. Os tempos pedem.

domingo, 18 de março de 2007

Escritos

Quantas vezes navegastes em meus sonhos! E agora chegais ao meu despertar que é meu sonho mais profundo (K.G.Khalil).

Estava procurando uns textos antigos. Tinha certeza que já havia escrito algo legal sobre aquele tema. Não achei. Acabei lendo uma coisa e outra e descobrindo que não mais reconhecia os textos como meus. Eles nem eram tão bons como achei na época. Todos bem pretenciosos. Coisas da graduação, da pós-graduação e sem graduação. Os desgraduados eram um tantinho melhores do que os demais. Fiquei me perguntando porque diabos guardei essa papelada. Podia ter reciclado. Feito barquinhos de papel para brincar na enxurrada com meus sobrinhos (ops! iria poluir o córrego com uma esquadra de celulose e alegria infantil). Queimado na fogueira no dia de São João ou ajudado a atear o fogo da churrasqueira nos finais de semana. Idéias não faltam. É melhor parar por aqui. Mas, enfim, o fato é que guardei os tais escritos. E eles agoram vêm me incomodar. Provas incontestáveis de um talento mediano (eufemismo para medíocre). Mas pior do que os acadêmicos, eram os particulares. Ah! Esses às vezes eram sinceros, doces, não raro ingênuos. Coisa que não se devia guardar. Nem sequer escrever. Mania essa de ir se largando pelo tempo. Para esses, ainda, um sorriso indulgente: "Boba essa menina! Continua boba e escrevendo".

quinta-feira, 15 de março de 2007

Louvor, graça e distinção



Olá meninas,

Demorei para aparecer pois estava gravando os últimos capítulos da novela "Sangre, Sudor e Xerox". Neste grande sucesso, a mocinha (euzinha...) é perseguida implacavelmente por uma tese maldosa cheia de páginas e por seus fiéis e desatentos operadores de máquinas de xerox....

Vocês provavelmente nunca assistiram, mas foi um recorde de público e ficou 6 anos no ar na Ciudad del Uspê, uma província mui fértil e mui longínqua de Desarrollo.

Vejam, com exclusividade, cenas do último capítulo no qual a mocinha defende, com louvor, graça e distinção, sua tese.
Este capítulo só irá ao ar dia 26 de abril do corrente ano.

A Engrenagem


Ás vezes Luma se pergunta o como fazer as coisas funcionarem. Os objetos, o corpo, os sonhos, o amor. Está tudo aí; em perspectiva, em possibilidade, na expectativa. Estaria tudo dentro de si? Sendo amadurecido, fermentado, adubado e quando estivesse verdadeiramente pronto aconteceria? É preciso não ter pressa. Paciência Luma, avalie, reflita, fermente. Permita-se a transformação sincera, a melhoria gradual, permanente e invisível.
Mas, e se estiver lesmolenta, plasta? Cautela excessiva o rabo do bicho. Bicho-preguiça? Bicho-medo? Do erro, mudança, acerto? Medo de não ser genuína, medo de mudar as peças que delicadamente encontraram lugar, função, felicidade. Nem tudo é Pluma, Luma, disciplina é fundamental. Disciplina é sempre exterior, falsa. É alguém te mandando, te impelindo a fazer, ainda que não seja você. Acorde cedo, vá para a academia, não coma chocolate, depile-se, ligue para sua mãe, estude, exercite-se! Disciplina, rainha da engrenagem, chave de fenda.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Varal



Para pendurar idéias! Molhadas, úmidas: coloquemos todas ao sol, pelo menos as que aqui couberem...

Viajando com Adorno


Não há possibilidade de o sujeito se constituir autonomamente no mundo moderno, diz o coleguinha Theodor Adorno no texto Mensagem numa garrafa, porque só se é algo em relação ao Outro, em relação às instituições, como se o próprio sujeito não tivesse valor de uso, e sim de troca somente. Tal valor resultaria na falta de liberdade, já que, de acordo com o amigo, não pode haver liberdade enquanto tudo tem um preço.

As pessoas submetem suas vidas às condições impostas pela lógica do mercado de trabalho e, em última instância, perdem possibilidades de movimentação: só podem estar dentro da engrenagem; estar de fora é ser marginalizado. Não podendo – ou não querendo – se movimentar, o sujeito espera sempre pelo seu 'semelhante' e, por isso, “o medo de amar o outro é, sem dúvida, maior que o de perder o amor desse outro” (p.43). Bonito isso que o colega disse, não? E ele vai além...

Constituindo-se através da sociedade de consumo, o sujeito, segundo Adorno, só pode mesmo se reificar, se 'coisificar' e se fragmentar. Reificado, cada vez se separa mais, tanto daqueles sujeitos de mesma classe social, quanto dos de classes distintas – e aí está o problema para o coleguinha: “A humanidade só sobreviverá se os extremos se unirem” (p.50).

Paradoxal, não? Mas compreensível.



ADORNO, T. W. (1996[1962]). Mensagem numa garrafa. In: ZIZEK, S. (org). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto. p. 39-50.


p.s. Isso é a 'adaptação' de uma resenha escrita em 2003.

terça-feira, 13 de março de 2007

Voltando

Tenho vontade de dizer olha eu aqui de novo, mas eu não tô nem aqui! Tô flutuando em algum espaço entre minha mente e meu corpo, sem canal de contato para fixar-me nem numa ponta nem outra. O quintal seria um refúgio, se eu já não tivesse fugido e tão distante de mim mesma que nem me vejo mais como sendo parte de mim. Venho só dizer que vou não vir...
Por ora, contemplo.

segunda-feira, 12 de março de 2007

A visita da Luxúria

Ontem, não estava em mim. Estava em outro.
Meu sopro de vida estava longe, viajando.
A luxúria foi de manhã sem olhar para trás, sem perceber que da janela estava o observante do caminhante.
Não me senti usada, pois nem ali estava.
Não me senti carne, pois acho que era de plástico ou outro material.
Não estava ali com toda certeza.
Suas perguntas, chamadas de indiscretas, passaram pelos meus ouvidos soando um quê de narcisismo.
Respondi verdadeiramente, o que passou em minha mente, sem maiores constrangimento ou doçura. Fui bem certeira àquelas perguntas que nada acrescentariam.
Meu coração nem sei se batia. Creio que não. Ele não estava compactuando daquela sinfonia desafinada.
Sei que a luxúria percebeu, por isso seu sono foi intranqüilo, bem como o meu. Talvez por isso ela saiu sem olhar para trás, como que percebesse que não foi bom, que não havia ninguém naquele espaço. Ela estava sozinha, suando e gozando. E desta forma, foi sem qualquer vínculo.
No momento do encontro, um Beijo na face.
Ao caminhar na noite estrelada e fria, sem um abraço, sem qualquer carinho.
Na alcova mostrou a sua sede. Bebeu ferozmente. Sua meta era passar a lança na "maçã triângular".
Pensava: "Não estou aqui". Estava traindo meus sentimentos, meu corpo e meu espiríto. Tanto que todos, sentimentos, corpo, espiríto saíram, deixando algo que não era eu.
Só havia meus olhos que não conseguiam olhar para nada, nem para os olhos da luxúria.
Estava com vergonha de mim, do que estava deixando de fazer.

domingo, 11 de março de 2007


O Beijo (1907/08) de GustavKlimt

Retorno ao Quintal

Pois bem! Uma vez expulsa pela serpente da senha não reconhecida, eis que retorno em uma tentativa de me reconciliar com o Quintal. No reencontro, trago algumas mudas e algum fertilizante. Não se trata de fertilizante nos termos de algo motivador para fazer germinar e crescer novas idéias ou para nutrir algumas antigas. Trata-se de bosta mesmo! Na verdade, o ato de bostar já se tornou um hábito perfeitamente aceito pelos freqüentadores do Quintal. Há de se reconhecer que as bostagens são de boa procedência. Então, pode-se considerar que as mudinhas que trago encontrarão um terreno virtual muito bem bostado.
Trouxe um pezinho, bem frágil ainda, de Otimismo. Dizem que não é planta fácil de crescer, mas tenho certeza que ela encontrará no Quintal outros arbustos, mesmo árvores frondosas, da mesma espécie. O problema é que junto veio uma parasita, um capinzinho conhecido como Cansaço Milenar. Só é possível reconhecê-lo no olhar, como a tristeza do olhar de Diana (lembra do Toninho Horta?).
Veio também uma muda de Compartilhar. Ela costuma esparramar a rama pelo chão. Não raro, quando bem bostada, esparrama-se entre as copas das demais plantas. Frequentemente, mas sem aviso, podem brotar pequenas flores de todas as cores. As folhas são bastante miúdas, podendo, ocasionalmente, entupir a tubulação de drenagem. Isso pode provocar pequenos alagamentos e tornar partes do Quintal um tanto quanto pantanosas.
Pois bem. Por hora me despeço. Espero que a serpente não me pertube e eu possa voltar sempre ao Quintal. Quem sabe vai ter uma goiabeira com goiabas vermelhas? Até hoje, encontrei uma abobrinha, um pedaço de mar, um gurufim.... Tá grande esse Quintal.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Diálogo possível



Essa aqui, onde era?


Ah, essa foi na viagem pra Oktoberfest. Em vez de fazer uma parada só, o ônibus tinha que parar umas três vezes porque o povo não se agüentava de vontade de mijar...


Kkkkkkkkkkkk!


Sério... Kkkkkkkkk!


E esse? E esse? Quem é?!


Não sei.


Como não sabe?


Ué, não sei. Não fui eu que bati a foto...


Mas tu tens uma foto de um cara quase pelado em cima de uma cama e não sabes quem é?


É. Kkkkkkkkkk!


Também não sabes como ela veio parar aqui, no meio das tuas fotos?


Pois é... Alguém deve ter deixado de presente! Mas presente mesmo seria se fosse ao vivo, né não?


Com certeza. Um baita presente!


Vou lá buscar uma cerveja; quer uma?


Quero.



Hummm, tá geladinha, geladinha!


Posso levar?


A cerveja?


Não. A foto.


Que?


Posso levar a foto do cara pra mim?


Claro que não!


Ué, por que? Tu nem sabes quem é...


Sim, mas é minha! Me deram.


Como tens certeza disso? Podem simplesmente ter esquecido aqui.


[...]


Então? Me dá?


Como é que eu vou te dar? Não é minha...


É tua ou não é, porra?


Sim, é. Quer dizer... não é. Ah, sei lá... É que eu já criei um vínculo com essa foto, com esse cara, sabe? Já inventei um monte de histórias com eles.


Com eles?


É, com o cara e com a foto. Uma vez falei pr'um colega do trabalho que o cara foi uma namorado francês que conheci em Salvador...


Mas tu nunca esteve em Salvador!


Pois é... Nem nunca conheci um francês... Falei que a gente ficou namorando a distância e que ele me mandava umas fotos assim.


E o cara acreditou?


Claro. E eu quase acreditei também, de tão boas que eram as minhas descrições dos lugares e dos dias com o cara da foto.


E ele tinha nome? O da foto?


Tinha. Era Louis... Só parei de contar essa história quando o tal colega falou pra outra pessoa do trabalho sobre a minha viagem a Salvador.


E aí?


E aí essa criatura queria conversar comigo sobre as belezas da capital baiana e eu só sabia falar do Pelourinho e do Elevador Lacerda...


Kkkkkkkk! Esse negócio não te fez bem. Me dá aqui essa foto que eu vou levar! Até porque ele não tem a menor cara de francês.


quarta-feira, 7 de março de 2007

frustração literária


Eu não entendo as palavras. Nem as palavras nem a escrita. Quisera eu ter o dom de por arrimo nelas, cavalgá-las, fazê-las dizer aquilo que vejo. Sim, sim, palavras não são para serem vistas, esse é o porém. Para mim,as palavras são coisas, aquilo que ouço é concreto, demais. Psicose? Talvez. Mas isso explica o fato de ter mais facilidade em escrever poesia do que prosa, de me ser quase impossível blogar sem me referir a uma imagem. Som é coisa? Por que algumas palavras são boas de falar? Hipotenusa, calangueiro, mandioca, bochecha, carambola, caramigau, peremptório, carcará, umbrela. São palavras pra gente brincar de falar, instrumentos pedagógicos, brinquedinhos de língua.Outras, achamos feias: pochete, suvaco, pernilongo, marrom, escroque, cacete. Como pode uma palavras ser feia? Feiúra qualidade de coisa, material. Ainda há as bonitas, elegantes. São palavras dignas de se falar tomando vinho, ao pé de uma lareira... Olha eu de novo dando imagem... Simplesmente, púrpura, sobretudo, mágoa, alma, flamejante, nuvem, simplesmente, púrpura, sobretudo, mágoa, alma, flamejante, nuvem, acalanto...

ps. as palavras em suas definições são contribuições mequetréficas.


Garota, eu vou para Hollywood

Bom, eu estava pensando em escrever uma coisa bem engraçadinha, uma espécie de diálogo... uma conversa entre as jardineiras aqui sobre uma suposta licitação que Deus teria aberto para contratar alguém que fizesse um novo layout do mundo – digamos assim, uma versão 2.0 desse nosso planetinha. Eis que, na minha navegação diária por blogs e sites, caí no http://revistatpm.uol.com.br/.
Quisera eu que isso não tivesse acontecido e que não tivesse visto a chamada para um ensaio com o cineasta Heitor Dhalia. Fui conferir, porque tinha lido uma matéria na revista Set sobre o filme dele que está para ser lançado este mês, O Cheiro do Ralo, e porque já assisti ao louco Nina, também dele, com a Guta Stresser no papel que dá nome ao filme.
Pois bem. A chamada da budega era assim: “Garota, eu vou para Hollywood. Obsessivo, workaholic e inteligente, Heitor Dhalia é o cineasta brasileiro do momento. Talentoso e sedutor, arranca elogios da crítica e provoca calafrios nas mulheres” - comecei a imaginar que boa coisa não me aguardava nessa leitura... e acertei.
Tudo bem, traçar um perfil do cara, contar sua trajetória, mas era necessário perguntar sobre relacionamentos e coisas afins? O indivíduo, que parece ser coerente, bem que tentou fugir: “Falar sobre mulher numa revista feminina? [pensa bastante] Preciso mesmo falar?”.

Mas a jornalista não se deu por vencida e, ao invés de questionar sobre o filme, sobre a dificuldade de se levantar dinheiro e de fazer o projeto ser aceito (de forma bem básica, é a história de um homem que se apaixona por uma bunda), por exemplo, fez o cineasta falar acerca da fama de sedutor, fidelidade, paternidade. Ai, que raiva! Por que revista feminina teima em fazer isso? Só porque o cara é bonito e/ou heterossexual e/ou solteiro, a mulherada vai se interessar mais em saber o que ele tem a dizer sobre esses assuntos que sobre seu próprio trabalho?
Olha, juro que vou comprar a revista na banca para ver se traz alguma coisa além do que está no site, alguma coisa que se aproveite, mas só amanhã... porque a decepção já foi suficiente por hoje.

terça-feira, 6 de março de 2007

cada uma com a sua cada uma


Algumas a definem geladinha, murchinha, rs. Outras, pensam que a sua é uma estação, na qual inevitavelmente o trem passará. Algumas a querem bem sujinha, outras, saudável, remediada. Por vezes ela vem sangrenta (molho bolonhesa, diria um amigo meu). Ou então bem acobertada por um maiô fora de moda.
Acompanhando os grandes alardes do dia internacional da mulher (que foi ontem) creio que o que realmente nos define e identifica são as abobrinhas, escarolas, alfaces... Afinal, não seria esse o jardim literal?

A Abobrinha

Na geladeira encontro alguns ovos, um queijo quase no seu fim, peito de peru e um vinho que não consegui abri desde que quebrei o saca-rolhas. Há também uma abobrinha que está de aniversário! Há muito tempo ela vive "solitária" na geladeira.

Eu olho para ela, ela me vê e nós trocamos algumas sílabas. A abobrinha quer que eu a veja e resgate-a. Mas não o faço, ou por preguiça de cozinhá-la ou por ela de certa maneira lembrar de quando minha mãe morava comigo.

Na verdade, a abobrinha ali sozinha olhando para mim, guardada, tem mais significado do que os ovos, o queijo, o peito de peru, as garrafas vazias de água. Ela está na geladeira para eu lembrar dela. Um dia posso arremessá-la ao lixo ou de repente comê-la. Sinceramente, não sei se vou fazer isso . A abobrinha é minha companheira, tenho um vínculo emocional. Na real, ela não tem escolha. Eu controlo a. Ela, a abobrinha está sob o meu poder. Eu tenho o poder decisório, se ela vai para a panela ou vai terminar seus dias murchando, trancada na geladeira.

Trancafiada, perto de mim, sob meus olhos, lá se encontra a frágil abobrinha. Ela não consegue fugir, pois não dou essa escolha. Quando ela pensa nisso eu a conforto e convenço que o melhor que ela pode fazer é continuar ali na geladeira. Conservada, reservada para meus caprichos.

Sabe, acho que fiz uma transferência. Às vezes, me sinto uma abobrinha no fundo da geladeira. Mesmo estando entre a goiabada e o vinho tinto seco, a abobrinha sabe que está só. Talvez, no escuro da gealdeira ela se relaciona com alguém!

A abobrinha pode até ter anseio de liberdade, mas não deixo isso acontecer. E eu, posso ter várias oportunidades de transformar, mas fico trancada no escuro da geladeira.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Minha vida de cachorro em Campo Grande

Campo Grande já ficou conhecida no cenário nacional por ser uma das cidades com o maior número de carros por habitante ou o menor número de habitantes por carro – escolham. É claro que isso dá notícia, até porque o trânsito da cidade foi considerado um dos mais indisciplinados do país, que por sua vez tem o pior trânsito do mundo. Resultado: fomos parar no Jornal Nacional.
Aquilo de que ninguém ainda se deu conta, porém, é que Campo Grande talvez se notabilize por algo muito mais “animal”: a cidade deve ter o maior índice de cachorros per capita do planeta. É verdade. Campo Grande é um verdadeiro canil. Na Vila Alba, por exemplo, onde morei por mais de 15 anos, tinha a impressão de que a quadra onde se localizava minha casa, na Avenida Madrid, poderia entrar para o Guiness Book como o local de maior concentração de cachorros por metro quadrado do Universo – depois de cientificamente comprovada a existência de cachorros no resto do Universo, é claro. Não havia nenhuma casa com menos de três cachorros (com exceção da minha, onde só havia um, por insistência de minha mãe).
É quase humanamente impossível dormir numa situação dessas. As alternativas são: a) dormir à tardinha, antes dos cachorros começarem a latir; b) dormir de manhã, depois que os cachorros pararem de latir; c) gostar de dormir ao som de latidos e d) não dormir. Ah! Pode-se usar tampão de ouvido, também.
As tentativas de acalmar os cães são geralmente infrutíferas. Primeiro, porque eles não latem de nervoso. Latem de alegria, latem para se comunicar e latem quando entram desconhecidos. Tenho a impressão de que também latem para irritar humanos. Na ânsia de aquietá-los, tentei João Gilberto, certa vez. Não deu certo, porque, por mais que eu aumentasse o volume, o som dos latidos sempre suplantava a voz do meu cantor favorito. Desisti da idéia dos soníferos depois de fazer pesquisa de preço nas farmácias e ao ser advertida sobre a existência da Sociedade Protetora dos Animais em Campo Grande (sim, os soníferos seriam para eles, os cães, não para mim, que odeio usar drogas – para dormir).
Mudei-me para outro bairro, Santo Amaro, e a esperança de dormir em paz desvaneceu-se na primeira noite. Estou pensando em rever a indicação da Vila Alba para o Livro dos Recordes.
O grande número de cachorros não traz dificuldades somente aos que buscam um sono tranqüilo. Para os caminhantes noturnos, a cachorrada é um problema. No centro da cidade, tudo bem, mas nos bairros não dá para andar nas calçadas à noite. Os notívagos têm de andar na rua se não quiserem ir aos sobressaltos. Enormes cachorros pulam detrás de grades e muros aparentemente inofensivos e devem ser os responsáveis por muitos infartos não explicados na calada da noite. Com todos os riscos, andar no meio da pista de rolamento ainda é preferível – os carros, no mais das vezes, são identificáveis pelos faróis.
Por outro lado, a população canina de Campo Grande poderia ser uma atração turística. Raças, tamanhos e cores os mais variados. Certo dia, vi um cachorro do tamanho de um bezerro. Acho que era um fila. Lembrei-me imediatamente daqueles filmes de terror, com cães de olhos vermelhos e dentes pontiagudos. Daria uma superprodução.
Pensando bem, há que se fazer justiça aos pobres bichinhos. Seus defensores alegam que eles protegem as casas e são boas companhias para as crianças. De volta ao início, os motoristas indisciplinados, que acham que pedestre não é gente e nos levam a passar vergonha em cadeia nacional de televisão, ainda são as piores pragas da Cidade Morena.

sábado, 3 de março de 2007

Mais despedidas... ou cicatrizes!

Em clima de recuperação, penso que aproveito para resolver histórias. Não sei bem se resolver é a palavra certa, ou se elas ficarão bem resolvidas. Talvez, cicatrizar coisas. Antibióticos têm esse poder também! A idéia não é matar nada nem expulsar ninguém. Acho que é só uma espécie de arrumação da casa... cada coisa no seu lugar, tirar poeira, abrir espaço. Nem quero ainda mudar de endereço. É só arrumar mesmo! Nessa tarefa, a médica-faxineira Daúde me ajudou. Vejam só:
Sans Dire Adieu
Letra de Paulinho Moska

Eu chorei até ficar debaixo d’água submerso por você
Gritei até perder o ar que eu já nem tinha pra sobreviver
Eu andei
Eu andei até chegar no último lugar pisado por alguém
Só pra poder provar o que era estar depois do final, do além
Eu andei
E cheguei exatamente onde algum dia
Você disse que partia pra nunca mais voltar
E eu já estava lá a te esperar
Sem dizer
Adeus
Eu fiquei sozinho até pensar que está sozinho é achar que tem alguém
Já me esqueci do que não fiz e o que farei pra te esquecer também
Se eu...
Não sei o nome do que sinto
Não tem nome que domine o meu querer
Não vou voltar atrás
O chão sumiu a cada passo que eu dei
Andei
E cheguei exatamente onde algum dia
Você disse que partia pra nunca mais voltar
E eu já estava lá a te esperar
Sem dizer
Adeus, adeus, adeus...
Haja pano, água e disposição pra dar conta dessa faxina! Ai, ai...

Despedida em grande estilo...


Bactrim F.
Vitamina C.
Novalgina (ou simplesmente dipirona).
Buscopan composto.
Digesan.
Pedialite 90.
Levoxin.
Vonau.


Exceto do segundo e do penúltimo da lista, me despeço de todos os outros que me companharam durante essa semana. Sem passar por ingrata, reconheço todo suporte que me deram. Diria que não aguentaria sem vocês. Mas confesso que a vida é bem melhor agora! Por isso, os que sobram eu designo ao bom e velho armário das emergências, esperando não ter que abrir a porta tão cedo!

sexta-feira, 2 de março de 2007

o que se faz ridículo?


o batman? a infâmia? a fraqueza? a pequenez? a ousadia? a sem-vergonhice? a enganação?

quinta-feira, 1 de março de 2007

Quando morrer, quero um gurufim

Para boa parte das pessoas – ao menos as brasileiras – a morte é uma coisa terrível e o simples ato de falar sobre o assunto é considerado algo de mau gosto. Claro que ninguém deseja ver os outros morrendo ou morrer (fora o pessoal que aderiu à moda de se atirar do Pátio Brasil Shopping), mas quanto mais nos afastamos, mais a morte se apresenta de forma assustadora, não é?

Antigamente era comum que os mortos fossem velados em suas próprias casas. Rolava comida, bebida e, inevitavelmente, o velório virava festa – ou pelo menos eram dadas boas risadas. Minha mãe tem histórias engraçadíssimas sobre os velórios da família. Ela mesma, no entanto, não conseguiu transmitir para os filhos essa leveza com a qual a morte pode ser tratada.

Só fui assistir a um velório aos onze anos, forçada pela catequista, quando entraram dois caixões na igreja onde ensaiávamos os cantos para a primeira comunhão. Nunca tinha chegado perto de um caixão, não conhecia os rapazes que haviam morrido e a doida me pegou pelo braço dizendo: “Vai lá, olha pra eles e reza”. Na época ocorrera uma enchente na cidade. Eles ainda tinham lama escorrendo pelos cantos dos lábios. Essa imagem não me deixou dormir direito por uns bons dias.

Quatro anos mais tarde, foi a vez da morte do meu pai. Não consegui chegar perto dele enquanto o caixão estava aberto. Olhava de longe, ele branco feito papel, e minhas pernas não me permitiam uma aproximação. Como é que pode?, hoje eu penso. Era o meu pai, por que eu tinha medo? O fato de ter sido sempre afastada de velórios e enterros me deixou essa idéia... de que tudo relacionado à morte era pavoroso e sombrio.

Quisera eu ter sido como o Enzo, filho de seis anos de uma prima, que no velório da minha vó ficou arrumando as flores em volta dela, acariciando e comparando as mãos dela com as de outra senhora que estava sendo velada no mesmo local. Era a vó com quem ele tinha mais proximidade. Não teve medo porque já sabe que todo mundo vai ter flores ao redor de si um dia – coisa que demorei para digerir.

Agora que não me parece mais tão amedrontador o verbo morrer, vou querer que façam um gurufim quando eu 'passar dessa pra melhor'. “Velório para os pobres se chama gurufim. E gurufim de verdade sempre acaba em samba”, diz o sambista Wilson das Neves. “É uma festa de despedida para a alma do morto seguir feliz até o céu. Mas hoje em dia não tem mais isso não. Só acontece em casos especiais, como na despedida do Mário Lago”. E na da Lídia, ele esqueceu de acrescentar. Ou foi o jornalista que cortou?

Na estação



O trem passará às 7:15. Provavelmente. Não passsará das oito. Caso ocorra algum problema, creio que até às 9:20 estarei nele. Nada o fará aparecer depois das dez e dez, no máximo dez e quarenta. Sei que por aqui ele não deixa de passar.

inspiração baiana

de dentro de meu ninho quero ficar sem tomar banho; dias... depois, eu concê combinando, ficar tão juntinho, que chega vai grudar. meu moreno!

Descoberta...


NUNCA TRANSEI NA MINHA PRÓPRIA CAMA
Fiquei imaginando como seria...