sexta-feira, 20 de abril de 2007

Caçada

Cheguei cansada naquele dia. O expediente no escritório fora puxado. Mil pessoas para atender; telefone tocando todo o tempo. Aquilo estava se tornando um inferno. Com a demissão de duas colegas do setor, meu serviço dobrara. Contenção de despesas. O resto do pessoal, com medo de também perder o emprego, trabalhava pesado sem reclamar. Serões, horas-extras e suspensão das pausas para lanche amiudavam-se.

À noite, sentada sobre a cama, pensava numa maneira de me livrar daquele emprego ou, pelo menos, diminuir o cansaço e a chateação ao fim do dia. Resolvi tomar um banho.

Cumpri o ritual meticulosa e demoradamente. Despi-me com calma, abri a torneira do chuveiro e, enquanto a água gelada escorria sobre o corpo, ensaboei-me com movimentos circulares, fazendo muita espuma. O calor aos poucos foi sendo substituído por uma sensação de frescor e limpeza. Lembrei-me da propaganda do sabonete na televisão.

Terminado o banho, enxuguei-me e saí do banheiro. O corpo, ao menos, pode-se lavar. Senti-me mais animada. Afinal, todos têm suas rotinas e ninguém morre por isso. Penteei-me diante do espelho do quarto. Sentindo a falta do desodorante, voltei ao banheiro para procurá-lo.

Quando abri a porta, estaquei. Lá estava ele a um canto da parede. Enorme, viscoso, olhando-me. O sapo. Não era verde, como nos livros infantis; era preto, quase todo, apenas com miúdas bolas brancas espalhadas por toda a pele. Com os olhos fixos em mim, parecia sorrir. Um sorriso asqueroso e diabólico. Não se mexia. Não precisava. Seu olhar exercia fascinação e domínio suficientes para me manter paralisada.

Assim que consegui sair do torpor, gritei tudo o que meus pulmões permitiram e puxei a porta do banheiro, que bateu com um ruído seco. Corri para o quarto e comecei a chorar. Não conseguia me livrar daqueles olhos. Imaginava aquele bicho me olhando durante o banho. Quase podia sentir sua pele rugosa encostando-se à minha. A pele, gelada como a água do chuveiro. Entrei em desespero. Chorei até me desmanchar.

Adormeci exausta. Acordei ainda assustada, com a impressão de que alguém me espreitava. Fazia movimentos bruscos para os lados, como a surpreender algo que fosse me atacar. Tinha de ir ao trabalho. Quase agradeci a Deus por aquele emprego. Cheguei ao escritório mais cedo do que de costume. Cumprimentei mecanicamente o pessoal dos outros departamentos. Ao abrir a porta da minha sala, lá estava ele novamente, sobre minha mesa. O mesmo olhar, o mesmo sorriso. Parecia maior e mais brilhante. Saí aos trambolhões, tropeçando em tudo o que havia à minha frente.

Na rua, ainda sem direção, entrei no primeiro ônibus que vi. Atônita, desci em um lugar movimentado do centro da cidade. Quando pus o pé na calçada, eu o vi, grudado a um dos pilares do ponto de ônibus.

Comecei a correr novamente, esbarrando nas pessoas, sem vê-las, atravessando ruas sem prestar atenção aos semáforos. Ouvia as buzinas e os gritos dos motoristas, mas como ruídos distantes, que não faziam sentido. Só pensava em fugir.

Sem fôlego, parava às vezes para respirar. Cada parada aumentava o horror. Eu o via nos bancos dos carros, nas sacadas dos prédios, nas cadeiras dos restaurantes. As crianças o traziam, risonho, sobre as cabeças.

Corri até não mais poder. Já não sentia mais dores. Não sentia e não pensava em nada. Parei, no fim da tarde, em um banco de praça, já sem alma. Não sabia onde estava. Olhava ao redor e não via nada. Não sabia se ele estava por perto. Não me importava.

Dormi naquele banco a noite toda. Acordei com o sol batendo em meu rosto pela manhã. Todo o pânico havia desaparecido. Eu estava decidida. Não havia nenhum bicho por ali, mas eu sabia que os sapos estavam à espreita, prontos para atacar.

Hoje eu os caço. Larguei o emprego no escritório para me dedicar a essa atividade. A cada dia aprimoro-me no meu ofício. Matei milhares deles. Diuturnamente, eu os procuro. Foco-os com uma lanterna e, assim, despidos de seu olhar satânico, eles se tornam indefesos. Iluminados, e descoberta sua fragilidade, só podem ouvir o estampido da bala que os mata.

Já os encontrei nas ruas, bares, bancos. As lojas de departamento os escondem às centenas. Descobri vários deles em escolas, berçários e parques infantis. Eles invadem as igrejas e as casas. Não raro, encontram-se sob a roupa das pessoas.

Resolvi investir todo o meu tempo em seu extermínio. Alguém precisa livrar a humanidade. Procuro reforços.

4 comentários:

Lidia disse...

Matando sapo a bala... Que violência! que horror!

Mariana R disse...

mas... e se fossem princípes?

Ana Silva disse...

Quando o príncipe é muito, a princesa desconfia.

Espartaco disse...

Nem sapos, nem príncipes, mas a realização de desejos inconscientes... sonhos.