Prazeres imediatos me apetecem. Mas confesso que já não me seduzem como em outros tempos. Não quero mais ter comida e sentir a barriga vazia. Quero água pra matar a sede. O suficiente pra beber e pra banhar. Nada que transborde, não, não é isso. Que chegue até a margem, isso basta. Pronto! Quero um marginal.
*no quintal de casa cada um faz o que quer. porque esse quintal é grande, do tamanho que a gente fizer. uma rede pra se balançar e balançar os pensamentos ele tem. tem um pé de limão, uma goiabeira, uma porção de plantas e flores e uns cachorros pra bagunçar o coreto. criança e adulto querendo ouvir história também sempre aparecem. e a gente conta. histórias de quintal. *
segunda-feira, 30 de abril de 2007
terça-feira, 24 de abril de 2007
segunda-feira, 23 de abril de 2007
a saga da imagem-não-imagem
parte I
Conseguimos capturar a imagem proibida! É isso mesmo minha gente. Por incrível que possa parecer a imagem inapreensível parece ser a de um casal curtindo um esplendoroso dia à beira mar. Ao que tudo indica, a imagem impossível está escondida na praia de Itacimirim, nas proximidades de Salvador. Ainda não se sabe, se a imagem é inexistente, como Caetana, se é da ordem do sobrenatural, como talvez a quereria a pequena Lídia, ou se é ainda, apenas, um fato desconhecido e sexual (como sempre querem incutir à autora). Um estudioso renomado, Marco Rhino (especialista em dêixes e permitamês) concluiu ser a imagem derivada do mundo das idéias de Platão, "por hora, nada ainda está provado; pois a ciência necessita da observação, e ninguém viu o de quê se trata, mas não se pode negar indícios de um casal amoroso, clara presença do idealismo platônico, com traços da ainda persistente ideologia burguesa-romântica".
sexta-feira, 20 de abril de 2007
Queria escrever um conto de terror
Uma vó, sua mãe, uma tia. As outras não reconhece. Elas falam coisas desconexas, palavras e mais palavras que não lhe dizem nada. Continua parada, no entanto, escutando e começa a lembrar de como aquilo teve início.
Conversavam num bar, ela e as amigas, sobre a dificuldade de escrever contos de terror. Julgavam complicado não parecer ridículo ou piegas um texto que tentasse retratar medo, sofrimento e outras coisas do gênero. Como era de costume, falaram e riram durante horas, até uma delas sugerir que fossem embora. No dia seguinte todas trabalhariam.
Ela seguiu sozinha para casa, que ficava a duas quadras do bar. Foi caminhando distraidamente, pensando que seria mais fácil escrever algo se um fato horripilante acontecesse em frente aos seus olhos (claro, não precisava acontecer com ela). Talvez um acontecimento sobrenatural, xícaras flutuando, portas batendo – sim, isso seria um bom mote, pensava a nossa personagem.
A sexta-feira transcorreu normalmente. No trabalho, o mesmo ritmo de sempre e, fora dois ou três telefonemas recebidos de algum engraçadinho que só queria ouvir sua voz, nenhuma reclamação a fazer. Saiu às 18h30 e foi para a aula de natação. Continuou imaginando coisas que poderiam acontecer para despertar sua escrita de terror: alguém se afogando na piscina, gritando que está sendo puxado... Mas o grito que ela ouviu foi o do professor – não queria ver ninguém parado na água.
Sábado. Mais um dia e nenhum parágrafo no papel. Resolveu dar uma volta de bicicleta – talvez um pneu furado a fizesse parar em frente a uma casa estranha, com movimentos e barulhos estranhos de pessoas estranhas... Estava ficando tensa por não ter o que escrever. Estranho isso. Pedalou até o parque da cidade e parou para tomar uma água de coco. Rapazes jogavam futevôlei, meninas patinavam e crianças brincavam nos carrinhos-de-choque. Nada de terrível poderia acontecer num cenário desses.
Ficou até anoitecer no parque, pedalando entre outras tantas pessoas. No caminho para casa, passou pela parte mais vazia do parque, uma vasta área onde haviam pinheiros enormes. Um desses pinheiros bem que poderia cair, imaginava ela. Mas não, o que aconteceu foi que seu pneu furou. Foi. E escureceu totalmente. E começou a ventar forte. Algo amedrontador, enfim. Parada por um minuto pensando no que faria, baixou e levantou os olhos algumas vezes. Foi então que viu: a vó, a mãe, a tia e outras mulheres.
Uau, está vendo pessoas mortas. Agora sim vai ter o que escrever. Pensa nas amigas lendo seu assombroso texto povoado de mulheres mortas que a cercam num parque. E é isso que ocorre. As criaturas fazem um círculo ao redor dela – que organização! Será que farão uma ciranda? Elas falam coisas desconexas, palavras e mais palavras que não lhe dizem nada. Continua parada, no entanto, escutando. Queria ter papel, caneta e um pouco mais de medo nessa hora. Queria correr, tropeçar num galho, cair e ser arrastada pelas fantasmas, mas não, continua parada.
Percebe, depois de um bom tempo, que ainda está parada. As mulheres não estão mais em volta dela e ela ainda está parada. Olha para seus pés. Onde estão? Não os vê, o que vê é um carro estacionando próximo a ela. Adolescentes bebendo e cantando. Uma das meninas começa a tirar a roupa e os rapazes jogam seu corpo entorpecido no capô do carro. Não têm vergonha de fazer isso na frente dela? Não há muita luz, mas não acredita que não a estejam vendo. Um deles vem em sua direção. Sente-se petrificada de medo (agora só precisaria do papel e da caneta)... Ele está urinando? Ele está mijando nela?! Está.
Então ela entende. E só lamenta não poder escrever essa história.
p.s. Todo mundo resolveu escrever hoje... rs rs rs
Meu amigo chega amanhã
Fui para o parque de águas quentes com Simone e Aurora. Tomei um copo e meio de caipirinha e fiquei me sentido muito mal. Desde que terminei o tratamento com acumputura, meu organismo está fraco para bebidas alcoólicas. Estou meio enjoada.
Levei Simone para a Rodoviária e não sei muito bem como consegui chegar na casa de Aurora, colocar o carro na garagem estreita, conversar com ela, descer para Pousada, entrar no quarto. Em minha mente, essa sequência aparece desordenada, insólita como um sonho.
Meu amigo chega amanhã. Sai de Sampa hoje pela manhã. Não vejo a hora dele chegar. Aurora é legal, mas não tem muito pique para fazer caminhadas longas, com muitas subidas e descidas. Meu amigo de traquinagens logo vai chegar para passarmos as férias juntos.
Fui caminhando até bem perto da cachoeira da serra. Gasta-se mais ou menos uma hora para chegar até lá saindo da Pousada. De lá fui para as águas quentes. Nadei na piscina semi-olímpica, depois cozinhei no "caldeirão". Em seguida, fui para a outra piscina menos quente onde fiquei boiando e viajando. Viajei tanto que quase me afoguei por causa do susto com o barulho da sirene sinalizando que o parque iria fechar. Voltei cantarolando. Alegria. Meu amigo chega amanhã. Vamos daqui para o Dedo de Deus no Vale dos Sonhos.
Levei Simone para a Rodoviária e não sei muito bem como consegui chegar na casa de Aurora, colocar o carro na garagem estreita, conversar com ela, descer para Pousada, entrar no quarto. Em minha mente, essa sequência aparece desordenada, insólita como um sonho.
Meu amigo chega amanhã. Sai de Sampa hoje pela manhã. Não vejo a hora dele chegar. Aurora é legal, mas não tem muito pique para fazer caminhadas longas, com muitas subidas e descidas. Meu amigo de traquinagens logo vai chegar para passarmos as férias juntos.
Fui caminhando até bem perto da cachoeira da serra. Gasta-se mais ou menos uma hora para chegar até lá saindo da Pousada. De lá fui para as águas quentes. Nadei na piscina semi-olímpica, depois cozinhei no "caldeirão". Em seguida, fui para a outra piscina menos quente onde fiquei boiando e viajando. Viajei tanto que quase me afoguei por causa do susto com o barulho da sirene sinalizando que o parque iria fechar. Voltei cantarolando. Alegria. Meu amigo chega amanhã. Vamos daqui para o Dedo de Deus no Vale dos Sonhos.
PROVAS DA INEXISTÊNCIA
É. Já decidi. Eu realmente não existo. Mandei mensagem para um amigo. Telefonei. Mandei mensagem de novo. Sem resposta. Telefone sempre na caixa de mensagens. Eu nunca deixo mensagens de voz. Gosto dos textos. Não gosto da voz. Há uns dias ele me mandou uma mensagem texto perguntando onde eu estava. Estávamos em estados diferentes. Como sempre. Ele concreto e eu etérea ou vice versa. Já descobri que às vezes eu líquido e ele volátil. Mas a gente já se encontrou. Mas agora não tenho mais certeza se a gente existe. Aliás, não tenho certeza se ele existe. Pois, conforme disse, tenho certeza de que não existo. Alguém precisa de provas de que não existo? Tenho certeza mais do que absoluta de que não. Mas não vou agüentar a vontade de enumerar algumas provas de minha inexistência.
1) Esse texto não existe (bem como, textos anteriores não existiram). Sua imaginação anda lhe pregando peças e você acha que está lendo. Se tentar reler, vai descobrir que o que pensou ter lido não está mais lá. Aliás, isso tem acontecido sistematicamente comigo. Sempre que tento reler, o texto não está mais lá. Já é outro. Eu sou outra. O autor já me parece outro. Então, acho que eles também não existem. Autores e textos não existem. Opinião controversa. Uma vez que afirmativa vem de uma fonte não confiável, ou melhor, inexistente.
2) Eu não apareço em fotos. Alguns afirmam que já viram fotos minhas. Não é verdade. Se olharem bem, verão que a pessoa da foto não existe mais. Aliás, as pessoas das fotos nunca existem de fato. Deixaram de existir alguns milésimos de segundo depois de capturada da imagem. Nunca vi um retrato meu.
3) Ninguém nunca me ouviu. Pelas mesmas razões que nunca me viram. Há um tempo resolvi representar alguns papéis para que as pessoas tivessem a impressão de que existo. Mas, de fato, eram apenas personagens. Um monte deles. Alguns são interessantes e vez ou outra resolvo reapresentá-los. Já até consegui enganar alguns amantes, que juram que já treparam comigo. Impossível. Pura imaginação deles. De verdade devem ter transado uma idéia... Transas não existem. Pelo mesmo motivo da inexistência de autores, textos e passados. Idéias também não existem. Nem final para essa p(b)ostagem....
Reticências existem. Conheci várias delas. Todas muito minhas amigas. Também os ornitorrincos. Quanto aos economistas tenho lá minhas dúvidas...
1) Esse texto não existe (bem como, textos anteriores não existiram). Sua imaginação anda lhe pregando peças e você acha que está lendo. Se tentar reler, vai descobrir que o que pensou ter lido não está mais lá. Aliás, isso tem acontecido sistematicamente comigo. Sempre que tento reler, o texto não está mais lá. Já é outro. Eu sou outra. O autor já me parece outro. Então, acho que eles também não existem. Autores e textos não existem. Opinião controversa. Uma vez que afirmativa vem de uma fonte não confiável, ou melhor, inexistente.
2) Eu não apareço em fotos. Alguns afirmam que já viram fotos minhas. Não é verdade. Se olharem bem, verão que a pessoa da foto não existe mais. Aliás, as pessoas das fotos nunca existem de fato. Deixaram de existir alguns milésimos de segundo depois de capturada da imagem. Nunca vi um retrato meu.
3) Ninguém nunca me ouviu. Pelas mesmas razões que nunca me viram. Há um tempo resolvi representar alguns papéis para que as pessoas tivessem a impressão de que existo. Mas, de fato, eram apenas personagens. Um monte deles. Alguns são interessantes e vez ou outra resolvo reapresentá-los. Já até consegui enganar alguns amantes, que juram que já treparam comigo. Impossível. Pura imaginação deles. De verdade devem ter transado uma idéia... Transas não existem. Pelo mesmo motivo da inexistência de autores, textos e passados. Idéias também não existem. Nem final para essa p(b)ostagem....
Reticências existem. Conheci várias delas. Todas muito minhas amigas. Também os ornitorrincos. Quanto aos economistas tenho lá minhas dúvidas...
caçadora (revanche)
Ai ai... coisa estranha chegar em casa depois de um dia laborioso e encontrá-lo. Sempre frio, distante. E o pior: ele me quer. Sinto gastura e desejo, depois de tantos anos ele continua o mesmo, o mesmo a me lamber, o mesmo homem rude, um tanto grotesco. Depois do mesmo sexo inabitual, dormi. No dia seguinte voltei ao trabalho, me sentindo extraordinariamente sexy. E lá estava ele, meu chefe, olhando-me com olhos de homem peludo, mais quente que meu homem, porém senti-o além. Senti medo de tamanha apetência em minhas entranhas. Fugi. Mas estavam em todos os lados, esses homens malditos. Tarados!!! Desde então, caço-os, não para matar, mas comer.
Caçada
Cheguei cansada naquele dia. O expediente no escritório fora puxado. Mil pessoas para atender; telefone tocando todo o tempo. Aquilo estava se tornando um inferno. Com a demissão de duas colegas do setor, meu serviço dobrara. Contenção de despesas. O resto do pessoal, com medo de também perder o emprego, trabalhava pesado sem reclamar. Serões, horas-extras e suspensão das pausas para lanche amiudavam-se.
À noite, sentada sobre a cama, pensava numa maneira de me livrar daquele emprego ou, pelo menos, diminuir o cansaço e a chateação ao fim do dia. Resolvi tomar um banho.
Cumpri o ritual meticulosa e demoradamente. Despi-me com calma, abri a torneira do chuveiro e, enquanto a água gelada escorria sobre o corpo, ensaboei-me com movimentos circulares, fazendo muita espuma. O calor aos poucos foi sendo substituído por uma sensação de frescor e limpeza. Lembrei-me da propaganda do sabonete na televisão.
Terminado o banho, enxuguei-me e saí do banheiro. O corpo, ao menos, pode-se lavar. Senti-me mais animada. Afinal, todos têm suas rotinas e ninguém morre por isso. Penteei-me diante do espelho do quarto. Sentindo a falta do desodorante, voltei ao banheiro para procurá-lo.
Quando abri a porta, estaquei. Lá estava ele a um canto da parede. Enorme, viscoso, olhando-me. O sapo. Não era verde, como nos livros infantis; era preto, quase todo, apenas com miúdas bolas brancas espalhadas por toda a pele. Com os olhos fixos em mim, parecia sorrir. Um sorriso asqueroso e diabólico. Não se mexia. Não precisava. Seu olhar exercia fascinação e domínio suficientes para me manter paralisada.
Assim que consegui sair do torpor, gritei tudo o que meus pulmões permitiram e puxei a porta do banheiro, que bateu com um ruído seco. Corri para o quarto e comecei a chorar. Não conseguia me livrar daqueles olhos. Imaginava aquele bicho me olhando durante o banho. Quase podia sentir sua pele rugosa encostando-se à minha. A pele, gelada como a água do chuveiro. Entrei em desespero. Chorei até me desmanchar.
Adormeci exausta. Acordei ainda assustada, com a impressão de que alguém me espreitava. Fazia movimentos bruscos para os lados, como a surpreender algo que fosse me atacar. Tinha de ir ao trabalho. Quase agradeci a Deus por aquele emprego. Cheguei ao escritório mais cedo do que de costume. Cumprimentei mecanicamente o pessoal dos outros departamentos. Ao abrir a porta da minha sala, lá estava ele novamente, sobre minha mesa. O mesmo olhar, o mesmo sorriso. Parecia maior e mais brilhante. Saí aos trambolhões, tropeçando em tudo o que havia à minha frente.
Na rua, ainda sem direção, entrei no primeiro ônibus que vi. Atônita, desci em um lugar movimentado do centro da cidade. Quando pus o pé na calçada, eu o vi, grudado a um dos pilares do ponto de ônibus.
Comecei a correr novamente, esbarrando nas pessoas, sem vê-las, atravessando ruas sem prestar atenção aos semáforos. Ouvia as buzinas e os gritos dos motoristas, mas como ruídos distantes, que não faziam sentido. Só pensava em fugir.
Sem fôlego, parava às vezes para respirar. Cada parada aumentava o horror. Eu o via nos bancos dos carros, nas sacadas dos prédios, nas cadeiras dos restaurantes. As crianças o traziam, risonho, sobre as cabeças.
Corri até não mais poder. Já não sentia mais dores. Não sentia e não pensava em nada. Parei, no fim da tarde, em um banco de praça, já sem alma. Não sabia onde estava. Olhava ao redor e não via nada. Não sabia se ele estava por perto. Não me importava.
Dormi naquele banco a noite toda. Acordei com o sol batendo em meu rosto pela manhã. Todo o pânico havia desaparecido. Eu estava decidida. Não havia nenhum bicho por ali, mas eu sabia que os sapos estavam à espreita, prontos para atacar.
Hoje eu os caço. Larguei o emprego no escritório para me dedicar a essa atividade. A cada dia aprimoro-me no meu ofício. Matei milhares deles. Diuturnamente, eu os procuro. Foco-os com uma lanterna e, assim, despidos de seu olhar satânico, eles se tornam indefesos. Iluminados, e descoberta sua fragilidade, só podem ouvir o estampido da bala que os mata.
Já os encontrei nas ruas, bares, bancos. As lojas de departamento os escondem às centenas. Descobri vários deles em escolas, berçários e parques infantis. Eles invadem as igrejas e as casas. Não raro, encontram-se sob a roupa das pessoas.
Resolvi investir todo o meu tempo em seu extermínio. Alguém precisa livrar a humanidade. Procuro reforços.
À noite, sentada sobre a cama, pensava numa maneira de me livrar daquele emprego ou, pelo menos, diminuir o cansaço e a chateação ao fim do dia. Resolvi tomar um banho.
Cumpri o ritual meticulosa e demoradamente. Despi-me com calma, abri a torneira do chuveiro e, enquanto a água gelada escorria sobre o corpo, ensaboei-me com movimentos circulares, fazendo muita espuma. O calor aos poucos foi sendo substituído por uma sensação de frescor e limpeza. Lembrei-me da propaganda do sabonete na televisão.
Terminado o banho, enxuguei-me e saí do banheiro. O corpo, ao menos, pode-se lavar. Senti-me mais animada. Afinal, todos têm suas rotinas e ninguém morre por isso. Penteei-me diante do espelho do quarto. Sentindo a falta do desodorante, voltei ao banheiro para procurá-lo.
Quando abri a porta, estaquei. Lá estava ele a um canto da parede. Enorme, viscoso, olhando-me. O sapo. Não era verde, como nos livros infantis; era preto, quase todo, apenas com miúdas bolas brancas espalhadas por toda a pele. Com os olhos fixos em mim, parecia sorrir. Um sorriso asqueroso e diabólico. Não se mexia. Não precisava. Seu olhar exercia fascinação e domínio suficientes para me manter paralisada.
Assim que consegui sair do torpor, gritei tudo o que meus pulmões permitiram e puxei a porta do banheiro, que bateu com um ruído seco. Corri para o quarto e comecei a chorar. Não conseguia me livrar daqueles olhos. Imaginava aquele bicho me olhando durante o banho. Quase podia sentir sua pele rugosa encostando-se à minha. A pele, gelada como a água do chuveiro. Entrei em desespero. Chorei até me desmanchar.
Adormeci exausta. Acordei ainda assustada, com a impressão de que alguém me espreitava. Fazia movimentos bruscos para os lados, como a surpreender algo que fosse me atacar. Tinha de ir ao trabalho. Quase agradeci a Deus por aquele emprego. Cheguei ao escritório mais cedo do que de costume. Cumprimentei mecanicamente o pessoal dos outros departamentos. Ao abrir a porta da minha sala, lá estava ele novamente, sobre minha mesa. O mesmo olhar, o mesmo sorriso. Parecia maior e mais brilhante. Saí aos trambolhões, tropeçando em tudo o que havia à minha frente.
Na rua, ainda sem direção, entrei no primeiro ônibus que vi. Atônita, desci em um lugar movimentado do centro da cidade. Quando pus o pé na calçada, eu o vi, grudado a um dos pilares do ponto de ônibus.
Comecei a correr novamente, esbarrando nas pessoas, sem vê-las, atravessando ruas sem prestar atenção aos semáforos. Ouvia as buzinas e os gritos dos motoristas, mas como ruídos distantes, que não faziam sentido. Só pensava em fugir.
Sem fôlego, parava às vezes para respirar. Cada parada aumentava o horror. Eu o via nos bancos dos carros, nas sacadas dos prédios, nas cadeiras dos restaurantes. As crianças o traziam, risonho, sobre as cabeças.
Corri até não mais poder. Já não sentia mais dores. Não sentia e não pensava em nada. Parei, no fim da tarde, em um banco de praça, já sem alma. Não sabia onde estava. Olhava ao redor e não via nada. Não sabia se ele estava por perto. Não me importava.
Dormi naquele banco a noite toda. Acordei com o sol batendo em meu rosto pela manhã. Todo o pânico havia desaparecido. Eu estava decidida. Não havia nenhum bicho por ali, mas eu sabia que os sapos estavam à espreita, prontos para atacar.
Hoje eu os caço. Larguei o emprego no escritório para me dedicar a essa atividade. A cada dia aprimoro-me no meu ofício. Matei milhares deles. Diuturnamente, eu os procuro. Foco-os com uma lanterna e, assim, despidos de seu olhar satânico, eles se tornam indefesos. Iluminados, e descoberta sua fragilidade, só podem ouvir o estampido da bala que os mata.
Já os encontrei nas ruas, bares, bancos. As lojas de departamento os escondem às centenas. Descobri vários deles em escolas, berçários e parques infantis. Eles invadem as igrejas e as casas. Não raro, encontram-se sob a roupa das pessoas.
Resolvi investir todo o meu tempo em seu extermínio. Alguém precisa livrar a humanidade. Procuro reforços.
segunda-feira, 16 de abril de 2007
Tentativa
Um homem caminhava sozinho pelas ruas do centro da cidade, sujo e com barba por fazer; as roupas gastas, mas sem rasgos ou remendos. Andava devagar, pensativo. Imaginava uma forma de arranjar mulher. Talvez ir a algum hotelzinho nos arredores da estação ferroviária ou, quem sabe, dar uns apertos, só para desafogar, ali mesmo, nos bancos da praça central, escondido pelos arbustos. Poderia ir até a outra praça, a da Igreja Matriz, que estava em reforma, cuja rua frontal transformara-se em passarela de prostitutas e travestis à procura de clientes. Mas não lhe agradava a idéia de pagar por uma mulher. Possuía dinheiro suficiente, mas preferia gastá-lo com bebida. Uma prostituta não fazia parte de seus planos. Resolveu caminhar mais.
Estava naquela cidade havia duas semanas e já se familiarizara com as ruas centrais. Hospedara-se em um hotel pequeno e muito sujo nas proximidades do terminal rodoviário e só ficava lá durante o dia, dormindo. À tardinha, saía para comprar cigarros e andar pela cidade. Voltava só pela manhã, depois de haver perambulado durante toda a noite. Nessa última tarde, não conseguira dormir. Sentia-se extremamente excitado. Precisava de mulher. Decidiu que à noite procuraria por uma.
Começou sua caminhada dessa noite pela rodoviária, mas logo se decepcionou, pois àquela hora só havia a turba de passageiros chegando e saindo da cidade. Mudou o trajeto. Foi parar perto da estação ferroviária, onde conheceu os hotéis que abrigavam casais de última hora para sexo rápido e pago. Viu que não conseguiria nada por aquelas bandas. Saiu dali e entrou em uma avenida arborizada e um pouco escura. Duas quadras acima, deparou-se com uma esquina mais iluminada, com semáforo, onde, à esquerda, erguia-se o prédio da faculdade católica. Tomava todo o quarteirão e era bastante irregular. Parecia ter sido construído aos poucos, cada parte ostentando arquitetura e idade distintas. Do lado oposto, várias lanchonetes, com mesas e cadeiras distribuídas pela calçada, apinhadas de jovens bebendo cerveja e refrigerante. Dirigiu-se a um dos bares e pediu uma cerveja ao garçom, um rapazinho magro que exibia sorridente sua intimidade com os freqüentadores.
Observou as moças que passavam. Calças apertadas e saias curtas, com pernas à mostra. Pensou que se estivesse limpo e barbeado poderia entabular conversa com alguma delas. Bobagem. Universitárias não lhe dariam atenção. Gostavam de se mostrar cultas e inteligentes e falavam demais. Melhor seria dar o fora daquele lugar. Aproveitando-se da distração do garçom, entretido numa conversa com os estudantes, levantou-se sem pagar a bebida e desapareceu na esquina.
Caminhava já desanimado pelo centro da cidade. Mais uma noite por aqui, pensava. Sem ter rumo certo, acabou voltando para os lados da faculdade. Passou pelo lado oposto ao dos bares e ainda viu os últimos estudantes deixando o prédio, que fechava os portões e se quedava silencioso e escuro. Novamente na rua dos hotéis, imaginou abordar alguma mulher e, em último caso, pagá-la.
Na parte escura da avenida, viu uma mendiga caída, completamente bêbada, emitindo sons ininteligíveis. Sem que ela protestasse, ergueu-a e fez com que apoiasse um dos braços em torno do seu pescoço. Virando a esquina, caminharam pela rua da estação, que terminava em um beco ermo e escuro, onde ele a soltou. Olhou-a demoradamente, indeciso ante desejo e repugnância. A mulher, caída ao chão, perguntou-lhe se tinha dinheiro.
Uma hora depois, algumas quadras adiante, no único bar aberto que avistou, pensava nos palavrões que a mulher lhe gritara e no cheiro ainda impregnado em suas roupas. Decidiu que um banho seria bom. Pediu uma dose de cachaça, bebeu-a de um gole e saiu. Voltou ao hotel onde se hospedara e ao se despir resolveu que no dia seguinte telefonaria aos homens que lhe arranjavam trabalho. Sempre tinham algum serviço para ele. Não era bom ficar muito tempo em um só lugar.
Estava naquela cidade havia duas semanas e já se familiarizara com as ruas centrais. Hospedara-se em um hotel pequeno e muito sujo nas proximidades do terminal rodoviário e só ficava lá durante o dia, dormindo. À tardinha, saía para comprar cigarros e andar pela cidade. Voltava só pela manhã, depois de haver perambulado durante toda a noite. Nessa última tarde, não conseguira dormir. Sentia-se extremamente excitado. Precisava de mulher. Decidiu que à noite procuraria por uma.
Começou sua caminhada dessa noite pela rodoviária, mas logo se decepcionou, pois àquela hora só havia a turba de passageiros chegando e saindo da cidade. Mudou o trajeto. Foi parar perto da estação ferroviária, onde conheceu os hotéis que abrigavam casais de última hora para sexo rápido e pago. Viu que não conseguiria nada por aquelas bandas. Saiu dali e entrou em uma avenida arborizada e um pouco escura. Duas quadras acima, deparou-se com uma esquina mais iluminada, com semáforo, onde, à esquerda, erguia-se o prédio da faculdade católica. Tomava todo o quarteirão e era bastante irregular. Parecia ter sido construído aos poucos, cada parte ostentando arquitetura e idade distintas. Do lado oposto, várias lanchonetes, com mesas e cadeiras distribuídas pela calçada, apinhadas de jovens bebendo cerveja e refrigerante. Dirigiu-se a um dos bares e pediu uma cerveja ao garçom, um rapazinho magro que exibia sorridente sua intimidade com os freqüentadores.
Observou as moças que passavam. Calças apertadas e saias curtas, com pernas à mostra. Pensou que se estivesse limpo e barbeado poderia entabular conversa com alguma delas. Bobagem. Universitárias não lhe dariam atenção. Gostavam de se mostrar cultas e inteligentes e falavam demais. Melhor seria dar o fora daquele lugar. Aproveitando-se da distração do garçom, entretido numa conversa com os estudantes, levantou-se sem pagar a bebida e desapareceu na esquina.
Caminhava já desanimado pelo centro da cidade. Mais uma noite por aqui, pensava. Sem ter rumo certo, acabou voltando para os lados da faculdade. Passou pelo lado oposto ao dos bares e ainda viu os últimos estudantes deixando o prédio, que fechava os portões e se quedava silencioso e escuro. Novamente na rua dos hotéis, imaginou abordar alguma mulher e, em último caso, pagá-la.
Na parte escura da avenida, viu uma mendiga caída, completamente bêbada, emitindo sons ininteligíveis. Sem que ela protestasse, ergueu-a e fez com que apoiasse um dos braços em torno do seu pescoço. Virando a esquina, caminharam pela rua da estação, que terminava em um beco ermo e escuro, onde ele a soltou. Olhou-a demoradamente, indeciso ante desejo e repugnância. A mulher, caída ao chão, perguntou-lhe se tinha dinheiro.
Uma hora depois, algumas quadras adiante, no único bar aberto que avistou, pensava nos palavrões que a mulher lhe gritara e no cheiro ainda impregnado em suas roupas. Decidiu que um banho seria bom. Pediu uma dose de cachaça, bebeu-a de um gole e saiu. Voltou ao hotel onde se hospedara e ao se despir resolveu que no dia seguinte telefonaria aos homens que lhe arranjavam trabalho. Sempre tinham algum serviço para ele. Não era bom ficar muito tempo em um só lugar.
quarta-feira, 11 de abril de 2007
vida internautica
Desde que aqui cheguei, estou assim, especialista. Sei de tudo; um pouco de ginecologia, um pouco sobre piscinas, algo sobre política, um tanto de nutrição, outro pouco sobre moda, arte, literatura... Tudo são sites, de tudo um pouco, sei nada... Mas que dá pra ficar maravilhado, isso dá... Além de poder fuxicar a vida dos outros, dou-me conta da decoração de Bali, dos desfiles da frança, que iogurte faz bem pra xoxota, e o caralho. (!) rs. Assim, sítio seguindo, de vez em quando dá vontade de comungar os últimos achados das últimas pesquisas. Agora o lance é a arquitetura, nessa feita, comunguemos meu novo achado e inspiração. Marcelo Ferraz. Sei pouco do homem, não sei como se parece, ou quantos cabelos tem. É um homem prático. Pero tem um livro pela Cosac e Naif (ó Piti, colega seu!), e trabalhou com uma arquiteta importante italiana que veio pro Brasil na década de 50. Tem me embevecido, e não me engana, não me contenta. Vou ter que comprar o livro. Ou uma casa.
terça-feira, 10 de abril de 2007
Meninas! Descobri uma forma de ficar rica sem ter de participar do Big Brother. É só ganhar o prêmio Nobel de literatura. A gente embolsa - fácil, fácil - mais de 1 milhão de dólares. Foi a quantia (U$ 1.300.000) que recebeu o ganhador do Nobel de 2003, o escritor sul-africano J. M. Coetzee, presença confirmada na Flip desse ano. Que tal? A gente se une e, escrevendo sob um mesmo pseudônimo, começa a lançar uns livros, assim como quem não quer nada... Aposto que daqui a uns três anos já estaremos fazendo sucesso internacionalmente e seremos as mais novas (ou não) milionárias do país em uma década.
(Ai, ai, como me divirto)
segunda-feira, 9 de abril de 2007
Cela especial
As ruas estavam quase desertas. Àquela hora da madrugada, em dias de semana, a cidade ficava mesmo vazia. Os dois amigos andavam devagar, parando às vezes para olhar se alguém os acompanhava.
Ela, mais nervosa, apertava o passo de vez em quando, mas logo voltava ao ritmo anterior. O rapaz não aparentava nenhuma agitação. Dava passos largos e vagarosos. Às vezes inspirava o ar e o soltava de forma ostensiva, ruidosa. A amiga costumava dizer que ele “soprava o mundo”, num suspiro ao contrário.
Haviam combinado aquilo havia semanas. Passaram vários dias discutindo e planejando. A idéia partira dele, mas ela havia insistido na realização. Sondaram as ruas centrais da cidade e finalmente marcaram a data.
Chegaram à livraria combinada. Disfarçadamente olharam ao redor. Certificaram-se da ausência de outras pessoas na rua e entraram no corredor lateral da loja. Era um corredor comprido e escuro. No final, uma porta de madeira dava acesso à sala central.
Com um canivete e um cartão de plástico, ele tentava forçar a fechadura, enquanto ela observava a rua. Alguns minutos depois, ele conseguiu abrir a porta e rapidamente os dois entraram na livraria. Ficaram parados, ofegantes, alguns segundos, até que a respiração voltou ao normal. A luz da sala estava desligada, mas a iluminação que vinha da rua era suficiente para não tropeçarem. Aos poucos, seus olhos acostumaram-se à semi-escuridão e eles já se deslocavam com facilidade.
Ao lado da entrada, junto a uma das estantes, ela se deteve. Ele caminhou mais um pouco, indo até a estante do fundo da sala. Parou, embevecido, e passou a mão por alguns livros da prateleira mais alta. Seus dedos corriam delicadamente pelos volumes, como temendo feri-los. Parou, finalmente, num deles e somente com o indicador e o polegar retirou, com vagar e prazer, Schopenhauer da estante.
Enquanto ele alisava a capa do exemplar, ela já havia retirado cinco livros do lugar. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis jaziam sobre uma mesa ao lado da estante. Estava cada vez mais nervosa. Sabia que não poderia levá-los todos, mas não conseguia decidir. De súbito, largou a seção de literatura brasileira e se dirigiu à estante vizinha. Correu os olhos durante alguns segundos e, na ponta dos pés, alcançou José Saramago na penúltima prateleira. Sorriu para a Jangada de Pedra.
Ficaram mais algum tempo passeando pela loja. Resolveram sair cada um com dois livros. Ele, carregando Schopenhauer e o Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues. Ela levava José Saramago e o Amor Natural, do Drummond. Odiava Nelson Rodrigues.
De novo na rua, caminharam em direção à avenida central da cidade. Chegaram à praça sem problemas. Sentaram-se num banco de cimento e começaram a rir da empreitada. Ele se gabava de ter previsto a falta de segurança da livraria. “Quem iria querer roubar livros?” – costumava dizer. Ela lamentava não poder trazer mais volumes. Levantaram-se e caminharam pela avenida até os trilhos do trem. Ali se despediram e cada qual foi para sua casa.
Depois do sucesso da investida, outras se seguiram. Adquiriram habilidade para abrir portas e assaltaram mais três livrarias. Na quarta, saíram carregando cinco livros cada um. Já não se preocupavam com polícia ou coisa parecida, tal a facilidade dos furtos. Entraram até num sebo, onde ela conseguiu um exemplar antiqüíssimo de Os Sermões, de Vieira, e ele, uma das poucas traduções de Heidegger para o português.
Certo dia, porém, um dos jornais da cidade publicou uma nota sobre o estranho caso das livrarias. Como os dois não liam jornais locais, não tomaram conhecimento do fato. A matéria dizia que a polícia começaria a vigiar as lojas de livros.
Desavisados, fizeram mais um furto e despreocupadamente foram beber cerveja numa lanchonete próxima à praça central. A polícia os encontrou folheando Pascal e Zola. Foram pegos em flagrante.
Na delegacia, um policial encaminhou os dois para interrogatório. O delegado parecia se divertir com a situação. Dirigia-se aos dois com sorrisos irônicos. A moça exigiu advogado e cela especial. Tinha curso superior.
– E a mocinha é formada em quê? – perguntou o delegado.
– Letras.
– Que bonitinho! O garotão, aí, também é formado?
– Não, eu ainda estudo. Filosofia.
– Olha, só, galera! – dirigindo-se aos policiais – o boneco faz Filosofia. Que gracinha!
As risadas soaram por toda a sala do delegado.
– Rapazinho delicado!
– Não tem curso de macho na faculdade?
– Vai fazer “advogacia”, rapaz!
O delegado, ainda rindo, ordenou que o levassem dali:
– Leva o florzinha pra cela do fundo, junto com os dois grandões, que eu vou ver a situação da donzela aqui.
Depois, ordenou revista na casa dos dois. Em suas estantes, a prova dos outros furtos. Todos os livros foram apreendidos, até os que não haviam sido roubados.
Foi um escândalo. O rapaz era de família tradicional, descendente dos fundadores da cidade. Seu pai, jornalista e historiador famoso, fazia parte dos altos escalões do governo estadual. A moça, mais velha e de família pobre, foi acusada de tramar os assaltos e desencaminhar o pobrezinho.
Durante várias semanas, eles foram assunto principal da imprensa. Criou-se polêmica nacional. Na televisão, faziam pesquisas de rua. “O senhor acha que eles devem ficar presos?”. Um sociólogo importante, num programa de entrevistas, questionava “uma sociedade culturalmente falida, que não propicia saber e conhecimento à juventude”.
O âncora mais famoso da televisão vociferou que “um país onde jovens precisam roubar livros é vergonhoso!”. Um deputado federal, dono de programa de rádio, disse que “roubo é roubo; são ladrões, são dois vagabundos, têm de ficar é na cadeia!”.
A TV estatal fez uma reportagem sobre juventude e delinqüência, e a rede de televisão de maior audiência no país criou uma programação especial para o caso. “Eles devem ser punidos?”. Os telespectadores ligavam para a emissora e votavam. Os jornais diários tinham espaço reservado e até selo para o assunto.
Cantores de MPB fizeram um grande concerto pela liberdade dos acusados e a Liga das Senhoras pela Moralidade organizou uma passeata exigindo sua manutenção na cadeia.
Do exterior chegaram manifestações de apoio aos jovens. A representação norte-americana da Comissão de Direitos Humanos veio até o Brasil especialmente para analisar a situação. Grupos de teatro anarquistas manifestaram apoio. Partidos políticos discutiram acirradamente o assunto. O Green Peace e o Sting não se pronunciaram.
Finalmente, o inquérito chegou à fase judicial e os dois foram condenados. Por serem réus primários, puderam cumprir a pena em liberdade.
Hoje, os dois ainda moram na mesma cidade. Ainda saem juntos para tomar cerveja e têm os mesmos amigos. As famílias perdoaram o ocorrido. Estão mais tranqüilos agora, mas planejam novas investidas. Só estão esperando que ele termine o curso de Filosofia. Melhor garantir cela especial.
Ela, mais nervosa, apertava o passo de vez em quando, mas logo voltava ao ritmo anterior. O rapaz não aparentava nenhuma agitação. Dava passos largos e vagarosos. Às vezes inspirava o ar e o soltava de forma ostensiva, ruidosa. A amiga costumava dizer que ele “soprava o mundo”, num suspiro ao contrário.
Haviam combinado aquilo havia semanas. Passaram vários dias discutindo e planejando. A idéia partira dele, mas ela havia insistido na realização. Sondaram as ruas centrais da cidade e finalmente marcaram a data.
Chegaram à livraria combinada. Disfarçadamente olharam ao redor. Certificaram-se da ausência de outras pessoas na rua e entraram no corredor lateral da loja. Era um corredor comprido e escuro. No final, uma porta de madeira dava acesso à sala central.
Com um canivete e um cartão de plástico, ele tentava forçar a fechadura, enquanto ela observava a rua. Alguns minutos depois, ele conseguiu abrir a porta e rapidamente os dois entraram na livraria. Ficaram parados, ofegantes, alguns segundos, até que a respiração voltou ao normal. A luz da sala estava desligada, mas a iluminação que vinha da rua era suficiente para não tropeçarem. Aos poucos, seus olhos acostumaram-se à semi-escuridão e eles já se deslocavam com facilidade.
Ao lado da entrada, junto a uma das estantes, ela se deteve. Ele caminhou mais um pouco, indo até a estante do fundo da sala. Parou, embevecido, e passou a mão por alguns livros da prateleira mais alta. Seus dedos corriam delicadamente pelos volumes, como temendo feri-los. Parou, finalmente, num deles e somente com o indicador e o polegar retirou, com vagar e prazer, Schopenhauer da estante.
Enquanto ele alisava a capa do exemplar, ela já havia retirado cinco livros do lugar. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis jaziam sobre uma mesa ao lado da estante. Estava cada vez mais nervosa. Sabia que não poderia levá-los todos, mas não conseguia decidir. De súbito, largou a seção de literatura brasileira e se dirigiu à estante vizinha. Correu os olhos durante alguns segundos e, na ponta dos pés, alcançou José Saramago na penúltima prateleira. Sorriu para a Jangada de Pedra.
Ficaram mais algum tempo passeando pela loja. Resolveram sair cada um com dois livros. Ele, carregando Schopenhauer e o Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues. Ela levava José Saramago e o Amor Natural, do Drummond. Odiava Nelson Rodrigues.
De novo na rua, caminharam em direção à avenida central da cidade. Chegaram à praça sem problemas. Sentaram-se num banco de cimento e começaram a rir da empreitada. Ele se gabava de ter previsto a falta de segurança da livraria. “Quem iria querer roubar livros?” – costumava dizer. Ela lamentava não poder trazer mais volumes. Levantaram-se e caminharam pela avenida até os trilhos do trem. Ali se despediram e cada qual foi para sua casa.
Depois do sucesso da investida, outras se seguiram. Adquiriram habilidade para abrir portas e assaltaram mais três livrarias. Na quarta, saíram carregando cinco livros cada um. Já não se preocupavam com polícia ou coisa parecida, tal a facilidade dos furtos. Entraram até num sebo, onde ela conseguiu um exemplar antiqüíssimo de Os Sermões, de Vieira, e ele, uma das poucas traduções de Heidegger para o português.
Certo dia, porém, um dos jornais da cidade publicou uma nota sobre o estranho caso das livrarias. Como os dois não liam jornais locais, não tomaram conhecimento do fato. A matéria dizia que a polícia começaria a vigiar as lojas de livros.
Desavisados, fizeram mais um furto e despreocupadamente foram beber cerveja numa lanchonete próxima à praça central. A polícia os encontrou folheando Pascal e Zola. Foram pegos em flagrante.
Na delegacia, um policial encaminhou os dois para interrogatório. O delegado parecia se divertir com a situação. Dirigia-se aos dois com sorrisos irônicos. A moça exigiu advogado e cela especial. Tinha curso superior.
– E a mocinha é formada em quê? – perguntou o delegado.
– Letras.
– Que bonitinho! O garotão, aí, também é formado?
– Não, eu ainda estudo. Filosofia.
– Olha, só, galera! – dirigindo-se aos policiais – o boneco faz Filosofia. Que gracinha!
As risadas soaram por toda a sala do delegado.
– Rapazinho delicado!
– Não tem curso de macho na faculdade?
– Vai fazer “advogacia”, rapaz!
O delegado, ainda rindo, ordenou que o levassem dali:
– Leva o florzinha pra cela do fundo, junto com os dois grandões, que eu vou ver a situação da donzela aqui.
Depois, ordenou revista na casa dos dois. Em suas estantes, a prova dos outros furtos. Todos os livros foram apreendidos, até os que não haviam sido roubados.
Foi um escândalo. O rapaz era de família tradicional, descendente dos fundadores da cidade. Seu pai, jornalista e historiador famoso, fazia parte dos altos escalões do governo estadual. A moça, mais velha e de família pobre, foi acusada de tramar os assaltos e desencaminhar o pobrezinho.
Durante várias semanas, eles foram assunto principal da imprensa. Criou-se polêmica nacional. Na televisão, faziam pesquisas de rua. “O senhor acha que eles devem ficar presos?”. Um sociólogo importante, num programa de entrevistas, questionava “uma sociedade culturalmente falida, que não propicia saber e conhecimento à juventude”.
O âncora mais famoso da televisão vociferou que “um país onde jovens precisam roubar livros é vergonhoso!”. Um deputado federal, dono de programa de rádio, disse que “roubo é roubo; são ladrões, são dois vagabundos, têm de ficar é na cadeia!”.
A TV estatal fez uma reportagem sobre juventude e delinqüência, e a rede de televisão de maior audiência no país criou uma programação especial para o caso. “Eles devem ser punidos?”. Os telespectadores ligavam para a emissora e votavam. Os jornais diários tinham espaço reservado e até selo para o assunto.
Cantores de MPB fizeram um grande concerto pela liberdade dos acusados e a Liga das Senhoras pela Moralidade organizou uma passeata exigindo sua manutenção na cadeia.
Do exterior chegaram manifestações de apoio aos jovens. A representação norte-americana da Comissão de Direitos Humanos veio até o Brasil especialmente para analisar a situação. Grupos de teatro anarquistas manifestaram apoio. Partidos políticos discutiram acirradamente o assunto. O Green Peace e o Sting não se pronunciaram.
Finalmente, o inquérito chegou à fase judicial e os dois foram condenados. Por serem réus primários, puderam cumprir a pena em liberdade.
Hoje, os dois ainda moram na mesma cidade. Ainda saem juntos para tomar cerveja e têm os mesmos amigos. As famílias perdoaram o ocorrido. Estão mais tranqüilos agora, mas planejam novas investidas. Só estão esperando que ele termine o curso de Filosofia. Melhor garantir cela especial.
quinta-feira, 5 de abril de 2007
las meninas
numticnumtamnumticnumtamnumticnumtamnumticnumtam
Sabonete PHEBO
O que ou quais as representações e lembranças que temos ao ver e cheirar um sabonete?
Será que o uso de um ou outro simboliza algo para as pessoas? Ou elas compram por causa da fragância associado ao preço, ou aquele que ajudará na proteção da pele, tem hidratação, "isto ou aquilo?"
Será que há distinções entre gêneros? As mulheres compram tais e os homens outros tais? Ou independe de gênero e terá significado em cada ser da espécie humana? Neste caso, para aqueles que usam...
Só sei que ao olhar o sabonete da marca PHEBO, de base vegetal, de glicerina, 90g, odor de rosas, com a embalagem amarela e no centro um desenho oval em vermelho, lembra-me a minha infância. Quando eu acreditava, na fantasia de criança ensinada pela mãe que o sabonete PHEBO era símbolo de realeza, de pessoas abastadas, haja vista, que lá em casa nem o cheiro passava por perto. Para mim simbolizava algo que eu não tinha.
No entanto, ontem no supermercado, quando vi o sabonete PHEBO por R$1,45 não tive dúvidas peguei e cheirei aquele odor de rosas e viajei, por alguns segundos. E retornei de um tempo vivido. Comprei apenas dois.
Bem, aquele sabonete de odor de rodas, (odor?! de rosas?!), presente desde 1930 e com a embalagem amarela me fez lembrar que cresci e posso fazer escolhas, não só de sabonetes.
Aniversário feliz!
terça-feira, 3 de abril de 2007
é o que você pensa?
Não eram amigas, mas tinham amigos em comum. Volta e meia se encontravam, então. Nesse dia, um sábado, se sentaram uma de frente para a outra na mesa de um restaurante onde um amigo comemorava o aniversário. Cada uma com seu namorado, com seu vestido e com sua faixa no cabelo. Uma gargalhava, enquanto a outra sorria discreta. Não se olhavam direito, diretamente. Também não pareciam se importar com o que os outros pudessem pensar, afinal muitos ali não se conheciam bem, não trocavam mais que meia dúzia de palavras. O que pensam e sabem uma da outra não diz respeito a ninguém. Ou diz? Ou é isso exatamente? Serão as palavras e os gestos dos outros os motores para a relação das duas? Uma relação que não se concretiza é o que (não) existe. Isso, vá lá, não são elas que imaginam, sou eu. E eu, agora, imagino que a disputa silenciosa que travavam enquanto comiam entre os amigos (e que sempre travam quando dividem o mesmo espaço) é algo que vai além do físico. Não são só as pupilas dilatadas, não é só o suor que lhes molha as mãos. A cabeça a fervilhar inventado histórias, supondo o que aconteceu e/ou o que vai acontecer, tentando adivinhar o que a outra pensa é que deve importar na competição. Quem melhor dormir é a vencedora.
Só!
Ele fez assim: um sinal com a cabeça. Eu fiz o mesmo. Ele entendeu tudo, imediatamente. Os procedimentos foram padrão: torpedo com telefone, celular ida e volta, toca, não toca, atende, não atende, mais intermediários, garçon! meu coração gelado e o sangue quente, por favor! Ele pega assim: firme, forte, grande, másculo! Eu me entrego assim: quente, mole, doce, regada de vontade. Ele sabe, eu não escondo. Gosto assim, seguro e direto. Ele conhece o caminho, o jeito. Eu conheço a hora, e como! Ele vem assim, falando, pedindo uma deusa. Eu me dou assim, mulher comum, sem surpresas, sem pressa. Ele, alerta. Eu, aberta, pronta, só!
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