Interior de Mato Grosso, último ano do século XIX, a pequena e recém-fundada cidade de Campo Grande, antes um entreposto comercial, recebia um casal de estrangeiros que vivia numa fazenda próxima e visitava o povoado. Compravam víveres e roupas de criança.
As pessoas da região não compreendiam exatamente qual sua nacionalidade e diziam que ele era “inglês-escocês”, sem saber explicar muito bem o que era isso. As fotos que os familiares herdaram mostravam um homem muito claro, loiro, de olhos azuis. Pelo sobrenome, Estelharde, trocando o lh por ll, podia ser catalão, mas, àquela época, não se podia fiar na origem dos nomes. A esposa, paraguaia, Dona Petrona, tez morena, olhos escuros, o cabelo preto muito liso, sempre arrumado num coque baixo.
Alguns meses depois da visita, num amanhecer de 1900, nascia Aurora. Tinha a pele e os olhos claros do pai; os cabelos lisos da mãe. Já na adolescência se mostrava alta, esguia, de uma languidez típica das meninas da época. As fotos que restaram revelavam uma moça frágil, de semblante cansado. Ou era o modo de retratar gente naquele tempo.
Aurora chegou a conhecer ex-escravos, imagine, dizia ela, naquele fim de mundo de meu deus, aquela fazenda perdida no meio do nada, no meio do mato, tinha coisa que até deus duvida. Seu Estelharde morrera numa emboscada por conta de briga de terra, quando ela estava apenas com um ano. Foi a única filha do casal.
Dona Petrona casou-se novamente, desta vez com um paraguaio, e teve outros filhos. O paraguaio gostava de jogo. Perdeu todos os bens do inglês, contava Aurora. A família ficou pobre, sobraram a sede da fazenda, fama e pose de fazendeiros. Aurora, rejeitada pelo padrasto, maltratada pela mãe, que a colocava sobre um formigueiro quando, bebê, sujava fraldas. Aurora apanhou durante toda a infância. Por sujar uma roupa, por quebrar algum objeto. Aurora não foi à escola, Aurora era analfabeta.
Jovem, passava e engomava a roupa de baile das irmãs. Aurora, nome de princesa nos contos de fada, não podia ir. Passava um, às vezes, dois dias inteiros na arrumação das vestes das outras. O padrasto não gostava dela, era branca e “mole” demais, como ele dizia. “Filha do gringo”. Era mais velha, tinha de cuidar dos afazeres domésticos e dos meninos menores, baile não. Aurora olhava, admirada, as moças mais novas, morenas como a mãe e lindas nos vestidos bonitos, saírem para as festas do povoado.
Aurora lavava as roupas da família no rio. Seguia para o curso d’água que havia nos fundos da sede da fazenda com trouxas, bacias, sabão de cinza. Ensaboava a roupa, batia-a nas pedras. Enxaguava na água limpa e fresca naquelas tardes tão quentes de verão mato-grossense. Pra lá do rio, homens trabalhavam. Lavradores pobres da região, empregados de algum fazendeiro. De longe, o moço bonito olhava Aurora. Ela não sabia seu nome, era mais um deles. Estava sempre sujo de terra, mas os olhos castanhos “cor de mel”, como lembrava Aurora, brilhavam quando o sol batia mais forte.
Às vezes, aparecia na fazenda um mascate, o turco, trazendo coisas lindas de moça ver. Colares de vidro, tecidos bordados, seda, seda de verdade. E as rendas? Ele tinha perfumes, pó-de-arroz e carmim. O turco, na verdade um sírio muçulmano de nome esquisito, era baixo, moreno, tinha grossos bigodes pretos. Para fazer os papéis da imigração, havia trocado Hammer Mahmud Farrah por José Pedro Salomão. Encantou-se com Aurora. Moça bonita. Dona Petrona ficou contente. Queria porque queria casar Aurora com o turco. Até que enfim essa menina vai servir para alguma coisa. Pelo menos vai-se casar com homem que pode dar vida boa a ela.
Mas Aurora nem via o turco. Ia para o rio feliz, a roupa ficava mais limpa, mais fresca, mesmo no calor. O moço bonito sempre olhando, Aurora um dia arriscou um sorriso. Moço respondeu. A irmã mais nova percebeu os olhares, correu pra mãe e contou que Aurora olhava e sorria. Aurora levou bronca, foi proibida de ir ao rio. Ficar sem carregar a trouxa, ensaboar, bater e enxaguar a roupa não era um prêmio. Castigo de não ver o moço.
E o turco aparecia, com fazendas umas mais bonitas do que as outras. Cada renda linda. Cada perfume cheiroso. A maleta de couro escovado, limpinha, sempre cheia de novidades. O turco arrumado num terno escuro, elegante, o bigode lustroso. Eita, até que esse turco fica bonito, assim todo almofadinha, dizia Dona Petrona. Essa menina tem sorte, o turco está alinhado.
Depois de alguns dias, Aurora pôde voltar ao rio. Do outro lado, o moço lá, trabalhando, as roupas maltrapilhas, as mãos grossas e sujas como sempre. Os olhos cor de mel logo perceberam Aurora. Moço, esperando um afastamento da irmã, ousado, chegou perto de Aurora. Vamos fugir, Aurora. Vamos pra cidade bonita, eu e você, amanhã cedo. Foge comigo, Aurora.
À noite, Aurora em casa, Dona Petrona e as irmãs incentivavam. Aurora, casa com o turco. Aurora sabia que lá no campo o moço se preparava para a viagem. Aurora sonhou com a cidade, com o moço. Aurora não dormiu direito. Você vai ter vestidos lindos, tão coloridos, Aurora. Vai ser a moça mais cheirosa das redondezas. Seu padrasto já está tratando do casamento com o turco, Aurora.
Aurora não teve coragem. No dia seguinte, Aurora se levantou como todas as manhãs. No rio, enquanto batia roupa nas pedras, seus olhos azuis procuravam entre os homens do campo a cor de mel dos olhos do moço bonito. Não estava mais lá.
As pessoas da região não compreendiam exatamente qual sua nacionalidade e diziam que ele era “inglês-escocês”, sem saber explicar muito bem o que era isso. As fotos que os familiares herdaram mostravam um homem muito claro, loiro, de olhos azuis. Pelo sobrenome, Estelharde, trocando o lh por ll, podia ser catalão, mas, àquela época, não se podia fiar na origem dos nomes. A esposa, paraguaia, Dona Petrona, tez morena, olhos escuros, o cabelo preto muito liso, sempre arrumado num coque baixo.
Alguns meses depois da visita, num amanhecer de 1900, nascia Aurora. Tinha a pele e os olhos claros do pai; os cabelos lisos da mãe. Já na adolescência se mostrava alta, esguia, de uma languidez típica das meninas da época. As fotos que restaram revelavam uma moça frágil, de semblante cansado. Ou era o modo de retratar gente naquele tempo.
Aurora chegou a conhecer ex-escravos, imagine, dizia ela, naquele fim de mundo de meu deus, aquela fazenda perdida no meio do nada, no meio do mato, tinha coisa que até deus duvida. Seu Estelharde morrera numa emboscada por conta de briga de terra, quando ela estava apenas com um ano. Foi a única filha do casal.
Dona Petrona casou-se novamente, desta vez com um paraguaio, e teve outros filhos. O paraguaio gostava de jogo. Perdeu todos os bens do inglês, contava Aurora. A família ficou pobre, sobraram a sede da fazenda, fama e pose de fazendeiros. Aurora, rejeitada pelo padrasto, maltratada pela mãe, que a colocava sobre um formigueiro quando, bebê, sujava fraldas. Aurora apanhou durante toda a infância. Por sujar uma roupa, por quebrar algum objeto. Aurora não foi à escola, Aurora era analfabeta.
Jovem, passava e engomava a roupa de baile das irmãs. Aurora, nome de princesa nos contos de fada, não podia ir. Passava um, às vezes, dois dias inteiros na arrumação das vestes das outras. O padrasto não gostava dela, era branca e “mole” demais, como ele dizia. “Filha do gringo”. Era mais velha, tinha de cuidar dos afazeres domésticos e dos meninos menores, baile não. Aurora olhava, admirada, as moças mais novas, morenas como a mãe e lindas nos vestidos bonitos, saírem para as festas do povoado.
Aurora lavava as roupas da família no rio. Seguia para o curso d’água que havia nos fundos da sede da fazenda com trouxas, bacias, sabão de cinza. Ensaboava a roupa, batia-a nas pedras. Enxaguava na água limpa e fresca naquelas tardes tão quentes de verão mato-grossense. Pra lá do rio, homens trabalhavam. Lavradores pobres da região, empregados de algum fazendeiro. De longe, o moço bonito olhava Aurora. Ela não sabia seu nome, era mais um deles. Estava sempre sujo de terra, mas os olhos castanhos “cor de mel”, como lembrava Aurora, brilhavam quando o sol batia mais forte.
Às vezes, aparecia na fazenda um mascate, o turco, trazendo coisas lindas de moça ver. Colares de vidro, tecidos bordados, seda, seda de verdade. E as rendas? Ele tinha perfumes, pó-de-arroz e carmim. O turco, na verdade um sírio muçulmano de nome esquisito, era baixo, moreno, tinha grossos bigodes pretos. Para fazer os papéis da imigração, havia trocado Hammer Mahmud Farrah por José Pedro Salomão. Encantou-se com Aurora. Moça bonita. Dona Petrona ficou contente. Queria porque queria casar Aurora com o turco. Até que enfim essa menina vai servir para alguma coisa. Pelo menos vai-se casar com homem que pode dar vida boa a ela.
Mas Aurora nem via o turco. Ia para o rio feliz, a roupa ficava mais limpa, mais fresca, mesmo no calor. O moço bonito sempre olhando, Aurora um dia arriscou um sorriso. Moço respondeu. A irmã mais nova percebeu os olhares, correu pra mãe e contou que Aurora olhava e sorria. Aurora levou bronca, foi proibida de ir ao rio. Ficar sem carregar a trouxa, ensaboar, bater e enxaguar a roupa não era um prêmio. Castigo de não ver o moço.
E o turco aparecia, com fazendas umas mais bonitas do que as outras. Cada renda linda. Cada perfume cheiroso. A maleta de couro escovado, limpinha, sempre cheia de novidades. O turco arrumado num terno escuro, elegante, o bigode lustroso. Eita, até que esse turco fica bonito, assim todo almofadinha, dizia Dona Petrona. Essa menina tem sorte, o turco está alinhado.
Depois de alguns dias, Aurora pôde voltar ao rio. Do outro lado, o moço lá, trabalhando, as roupas maltrapilhas, as mãos grossas e sujas como sempre. Os olhos cor de mel logo perceberam Aurora. Moço, esperando um afastamento da irmã, ousado, chegou perto de Aurora. Vamos fugir, Aurora. Vamos pra cidade bonita, eu e você, amanhã cedo. Foge comigo, Aurora.
À noite, Aurora em casa, Dona Petrona e as irmãs incentivavam. Aurora, casa com o turco. Aurora sabia que lá no campo o moço se preparava para a viagem. Aurora sonhou com a cidade, com o moço. Aurora não dormiu direito. Você vai ter vestidos lindos, tão coloridos, Aurora. Vai ser a moça mais cheirosa das redondezas. Seu padrasto já está tratando do casamento com o turco, Aurora.
Aurora não teve coragem. No dia seguinte, Aurora se levantou como todas as manhãs. No rio, enquanto batia roupa nas pedras, seus olhos azuis procuravam entre os homens do campo a cor de mel dos olhos do moço bonito. Não estava mais lá.
O rapaz nunca mais voltou. De que adiantava se voltasse? Não tinha nem nome. Muitos anos depois, segunda metade do século XX, numa tarde quente de Campo Grande, o pequeno povoado já transformado em cidade, Aurora Estelharde Salomão contava o episódio à neta, uma gordinha metida, de cabelo espaventado. A menina prometeu: Voróra, um dia vou escrever a história do moço bonito, pra todo mundo saber a belezura daqueles olhos castanhos. Aurora riu.
Da série “Mulheres da minha vida”, que ainda não escrevi, também conhecida como “A paladina* do feminismo e sua luta contra o monstro do mito do amor romântico, round perdido nº 1”.
* Vocês sabem que essa flexão de gênero não é registrada?Ah, Saramago, obrigada por me lembrar de que "essas palavras não tinham feminino em hebraico..."
7 comentários:
Que belezura de palavras, camponesa! Se emocionei ....
Grande e simples como vento na cara em dia de alegria.
É isso.
oh
pensei q fosse ser auto biográfico, bochechudaaaaaaaaaaaaaa!
lidinho, gostoso de ler. estória com cheiro, né?
Pô, Val, autobiográfico? Você acha que eu sou do fim do século XIX? rsrs
cinderela campograndense
De cinderela, ela só conheceu as cinzas.
Lídia, você já está utilizando a nova ortografia, é? Deixe o hífen do meu campo-grandense enquanto dá!
rsrs
Tô ficando maluca ou teve mesmo um post apagado?
apagaram os hífens
os posts ainda estão aguardando apagador
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