Diante do verde deslumbrante das águas do litoral natalense, Cátia K. sentia o vento nos cabelos e observava o namorado, Fred M. Neto, um jovem engenheiro eletrônico natural de São Paulo. Enquanto contemplava os músculos do rapaz de 1,90m de altura, com a pele escura brilhando de suor sob o sol equatoriano da capital potiguar, a bela morena lembrava-se de sua própria história.
Cátia K. nasceu numa família de músicos. O pai tocou violão com João Donato em 1964, no Beco das Garrafas, e deixou a música para entrar no mercado financeiro. Tornou-se milionário. Nos fins de semana, em sua casa de campo, para a família e os amigos mais chegados, sempre mostrava a primeira versão de “O pato”, de João Gilberto. Repetia, exultante, ao final de cada execução: "Viram? É bem diferente daquela que todos conhecem!" Nessa hora, a mãe servia mais bebida.
A mulher também teve seu passado musical. Participou de um momento importante da MPB. Enquanto Elis Regina gritava “Arrastão”, a mãe de Cátia K. e mais duas backing vocals, ou cantoras de apoio – como gostariam Tinhorão e Aldo Rebelo –, seguravam o resto da canção. Depois disso, também participou de discos de Emilinha Borba, Doris Monteiro e, vejam só, Chico Buarque – ouvidos atentos podem perceber o seu canto soprano soterrado na mixagem de "A banda".
O encontro dos dois aconteceu numa noitada no fim de 1967. Nunca deram detalhes sobre aquela noite. Cátia descobriu que foi uma reunião liberal, bem à moda da época. Ela sempre pensou que festinhas em que ninguém é de ninguém nunca renderam lares burgueses, mas sua família era prova contrária. Nasceu muitos anos depois da idílica orgia protagonizada pelos progenitores.
Por causa dos pais, sabia tudo sobre João Gilberto, inclusive suas músicas. Percebia a diferença entre lá sétima maior sustenido e sol em ré menor na quarta-feira de cinzas. Também entendia porque Nara resolvera subir o morro e resgatar velhos sambistas negros. Mais de uma vez ouviu em casa: "O motivo não era musical."
Não foi dos pais, porém, que lhe vieram as grandes influências. A governanta Madalena del Puentes Saracuja, nascida na Argentina e criada em Monte Carlo, com passagens por Cingapura, Pedro Juan Caballero e Nova Andradina, marcou decisivamente seu contato com as melodias, ritmos e harmonias. Profissional de respeito, já era governanta no período em que Cátia nasceu. Detalhista, de relacionamento seco e preciso com outros empregados, mostrou à bela menina obras de Chopin, Bartok, Wagner, Puccini, Copeland e Damião Experiença. As sessões musicais eram secretas. Ninguém a elas tinha acesso, somente as duas desfrutavam do prazer sonoro, mesclado aos toques que prolongavam fisicamente o deleite musical que a experiente senhora apresentava a Cátia K.
A governanta também tentara a carreira musical. Não gostava de falar de seu passado. A menina descobrira que suas investidas foram no canto erudito, e Maria Callas era culpada por seu insucesso. Mas não foi de sua boca que ouvira isso. Os detalhes juntaram-se na perspicácia de Cátia, atenta às pistas que a empregada deixara ao longo dos anos. Callas nunca entrava numa sessão de audição de divas da ópera que Madalena organizava. Na única vez que se ouviu seu canto no quarto, a argentina tirou o disco da vitrola e o jogou contra a parede, espalhando cacos de vinil pelo aposento. “Outro disco na capa errada”, explicou.
Enlevada, Cátia K. voltou à paisagem paradisíaca que a cercava, lembrando-se de que um dos motivos que fizeram seu pai contratar Madalena fora o zelo com os discos, primeiramente os de vinil, depois, os CDs, que não podiam estar fora de capa, muito menos com poeira ou marcas de dedos, o que o deixava possesso. Não viveu para o MP10.
Cátia K. virou-se para o namorado: “Amor, vamos para o hotel? Quero uma ducha fria, uma salada de rúcula e uma massagem completa. Precisamos também terminar os cálculos para o próximo trabalho." Fred M. sorriu.
Composição, criação e argumento: Oscar Rocha
Colaboração: Alfredo Andrade de Moraes
Pai de Cátia K. inspirado em Jefferson Contar
Adaptação e texto: Ana Silva