terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Sem um bocado de tristeza não se faz um samba










Eu era uma pessoa feliz. Cantava muito, várias vezes ao dia. Curtia axé, música que me fazia rir, além de dar uma vontade danada de dançar, sair de casa, paquerar. Alegria, letras divertidas, engraçadas, mesmo as de amor, levantam o astral da gente, a vontade é de sorrir sempre. O máximo que se sofre é com alguma baladinha mais romântica da Ivete Sangalo.


Muito feliz, era eu, até o dia em que se mudou uma moradora para o apartamento ao lado do meu. O prédio é pequeno, a gente tem de tomar cuidado com o barulho, quase sempre dá para ouvir o programa de TV ou a música do apê vicinal. Eu escutava meus discos num volume alto, reconheço, todo mundo gosta de axé, não é? Nunca me preocupei porque ninguém reclamava. A vizinha tampouco. Mas, depois de algum tempo, também pôs música a tocar.

Aí começou meu calvário. Ela gosta de MPB das antigas, Bossa Nova, samba, alguma coisa latino-americana, por aí. Um sofrimento sem fim, uma tristeza. Comecei a sofrer com os retirantes nordestinos, um tal de Edu Lobo, borandá que a chuva não chegou, pra acompanhar Asa Branca, do Luiz Gonzaga, um cara que só faz a gente chorar, saudade amarga que nem jiló, o meu remédio é cantar.

Tive de aprender história do Brasil, sofri tanto com a ditadura militar! Ora João Bosco e Aldir Blanc, na voz de Elis Regina, falando de exilados e do irmão do Henfil, ora Geraldo Azevedo cantando a metáfora do regime de exceção. E eu pensava que já vou embora, mas sei que vou voltar, amor, não chora, era só uma música de amor... E o Gil? Ele verteu um reggae jamaicano para o português só para falar dos amigos presos, amigos sumindo assim pela ditadura, ô gente que gosta de cantar desgraça.

Estranho, ela não parece muito triste, a vizinha, uma coroa assanhadinha que usa roupas curtas e coloridas. Mas deve ter a alma em prantos, não é possível alguém ouvir essas coisas e não sofrer. Naquela voz grave e tristíssima da Mercedes Sosa, a Alfonsina se mata no mar, sabe diós que angustia te acompañó, que dolores viejos calló tu voz? Quem é que não se acaba de tanto chorar? Ah, em espanhol, ela também ouve Silvio Rodrigues, o cubano, minha Nossa Senhora da Revolução, quase desidratei de tanto choro com a versão do MPB4, esse amor é tudo quanto tenho e, se eu vendo ou empenho, para que respirar?

A vizinha passou o carnaval ouvindo Nana Caymmi, alguém acredita? Um sofrimento que não acaba mais, sussuarana, meu coração não me engana, vai fazê cinco sumana, tu não vorta nunca mais, junto com a Maria Bethânia, coisa mais dolorosa. Fiquei macambúzio durante toda a folia só ouvindo a baiana cantar boleros.

Por falar em baianos, ai, meu Senhor do Bonfim! Eu achava que a Bahia era só axé. Mas é um desespero, por exemplo, esse Dorival Caymmi, a gente faz o que o coração dita, mas este mundo é feito de maldade e ilusão. Que aperto no peito! Olhe, Caetano Veloso cantando que sobre toda estrada, sobre toda sala, paira, monstruosa, a sombra do ciúme me deixou os olhos úmidos por dois dias seguidos. Almas esticadas no curtume? Valha-me, minha Nossa Senhora da Penha.

Agora, as músicas de Maysa estão de volta ao sucesso, por conta da série de televisão, mas eu conheci aquela pérola de tristeza do Tom Jobim e Aloysio de Oliveira de que ando bebendo demais, que não largo o cigarro e dirijo meu carro com a Ângela Ro Ro. Eita, que até os pops que a vizinha ouve são tristes.

Mas o pior de todos é o tal do Chico Buarque, de quem ela tem mais discos. Com esse cidadão, tive de sofrer com os sem-terra, levantados do chão, como em sonho perder a passada e no oco da terra tombar? Descobri que tem sem-terra até em Portugal, que coisa! Da ditadura brasileira, então, nem é bom falar, é uma verdadeira aula de história e de sofrimento. É o Stuart Angel torturado com fumaça de óleo diesel pra cá, a Zuzu Angel, essa mulher que só queria lembrar o tormento que fez o meu filho suspirar pra lá! E sangue nos olhos e lama nos sapatos é pra se matar, não é?


E o suprassumo da melancolia, saudade do que ainda não se viveu (como é que alguém imagina saudade do futuro, minha gente?). Tive de pegar licença de três dias no trabalho depois de acreditar que o dia vai raiar só porque uma cantiga anunciou: não conseguia parar de chorar!

Não vou nem comentar as músicas de amor, caso contrário, eu ardo de desejo ou perdemos a noção da hora. Começo a me perguntar de que romance antigo me roubaste e penso que na verdade não me queres mais. Não dá, arrasa o meu projeto de vida. É loucura, às vezes, acho que a vizinha perdeu a saia, perdeu o emprego, bebeu veneno e vai morrer de rir.

O Natal, essa mulher passou ouvindo que o Papai Noel morreu. Como é que alguém escuta isso nas festividades? Acho que é a mais triste música de Natal de todos os tempos. Estraga a festa de qualquer cristão. O autor, Assis Valente, matou-se. Não era pra menos. E o Taiguara? Não gosto nem de me lembrar, nesta vida sem amor que eu aprendi... pô!

Sei que os dias têm sido assim, difíceis, desde que a vizinha se mudou para cá. Realmente, eu era feliz e não sabia... acho que já estou ficando paranóico. Mas ouvi uns boatos no corredor e me parece que ela vai-se mudar. Animei-me, penso que poderei novamente ser alegre. Vou chamar os amigos e fazer uma festa. Baixar uma coletânea da Cláudia Leite no mp3 e mandar ver. Sorrir e ser feliz, como antes. Chega de saudade.

10 comentários:

Lidia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lidia disse...

Muito bom!
mas não me fale em chorar... Acho que ando um pouco sensível ultimamente. No fim de semana passado assistimos a'O curioso caso de Benjamin Button - chorei quase que a sessão inteira... ridícula! rs

Unknown disse...

Vcs falam de brincadeira, mas eu realmente acho essas músicas tristes que só... eta dor de cotovelo!!
Ah, e eu tb dei minha choradinha no fim do Button...

Milena disse...

Bom há épocas e épocas parar se ouvir certo de tipo de músicas, as aqui em "Giz de Fora" a galera só ouve sertanejo e funk! impressionante ! heheheheeh

Esperando Godot... disse...

Ana Cláudia... vizinha de si mesma!

Anônimo disse...

Que nada, vizinha de uma outra que até agora deve estar chorando....rs

Valéria Barros Nunes disse...

falando em chorar... comigo messsssssssss
tava eu pensando o q o Chico tá fazendo agora q não tá comigo e chorei, fui ouvir Vai passar, e chorei mais. ainda arrepio qdo penso nos filhos levando pedra...

Valéria Barros Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
valeriabarrosnunes@gmail.com disse...

Quando meu pai via um “céu de brigadeiro” minha mãe via um sol de lavadeira. Ele fardado, barba escanhoada, sapatos reluzindo, ganhava a rua. Ela de vestidinho, chinelos de salto e cabelos presos, nos dava casa limpa, comida gostosa, roupa costurada, lavada e passada. Meu pai tinha que manter a Ordem e o Progresso da Nação; minha mãe tinha seu serviço de mulher. Eu, tenra, tinha noites de lençóis com cheiro de sol.
Os dias eram de rua. Com ou sem escola, a molecada era de rua. A cidade era de rua: Rua de Trás, Rua da Mangueira, Rua da Casinha .... Perdi as ruas em Brasília, ganhei as quadras. Foram-se as casas da cidade, ficaram os blocos do Plano. Sem blocos de rua, os carnavais da minha infância vieram pela Telefunken. Os tambores, ignorantes de samba, marchavam. Vejam que alegria! Eu não via. “Blocos de barões famintos...” meu carnaval era uma tristeza só...Não tinha rua, não subia ladeira.
Em todo o lugar a gente tem que brigar pra poder brincar. Sempre foi assim, sempre será. A brincadeira é subversão! Carnaval no Plano dá briga pr’um ano! “Oh, quanto riso! Oh, quanta alegria!” Os palhaços foram banidos do salão!! O tempo virou.

RECEITA ORIGINAL DE OUTROS CARNAVAIS

boas doses de oposição,
um punhado de gente,
pitadas de indignação,
bom humor abundante;
Junte disposição, bebida a gosto, chacoalhe num pacotão e sirva na contramão com marchinhas de atolar generais e demais

Quando brotei, onde um mundo via uma brincadeira boa eu via uma boa birra! Onde meu pai via vulgaridade, eu via popularidade; onde minha mãe via perigos, eu via delícias. Um mundo via sacanagens, outro via traquinagens. Meu carnaval não era de imitação.
Fugi das ruas de Brasília pra não passar meus carnavais no Eixo! Hoje, sou meu pai e minha mãe. Na folia, tô no bloco de casa. Sem brincadeira, confiro as condições de voo, quando a lona azul celeste se arma e uns pensam que é um bom sol pro carnaval, eu tiro o dia pra pendurar tudo no varal, na maior alegria! “Tchau, I have to go now!”

Ana Silva disse...

Por que não pôs no blog???