Certa manhã, acordou esquisita. Isso deve ser da idade, pensou, já não sou menina. A sensação perdurou durante todo o restante do dia, no trabalho, no ônibus, na rua. Em casa, ao jantar, com um prato de sopa diante de si, tomou a decisão. Começaria a economizar, guardar bens, valores, qualquer coisa.
No dia seguinte, saiu de casa mais cedo e passou por um pequeno comércio de quinquilharias. À noite, abriu a sacola que trouxera da lojinha e dali retirou uma caixa de madeira, de trinta centímetros quadrados. Recortou pedaços de feltro, que colou nas paredes internas, e finalizou o trabalho fechando a peça com uma chavezinha de metal. Se não de ouro, ao menos dourada, contentou-se.
Desde essa noite, não pensava em nada que não fosse conseguir objetos para guardar na caixa. Obviamente, não dinheiro, mais bem-guardado no banco. Queria coisas reluzentes, algo que as reviravoltas da economia não ameaçassem de desvalorização.
Tudo o que lhe parecesse de valor ia para dentro do abrigo. Quando meus herdeiros puserem os olhos sobre este tesouro, saberão que lhes doei coisas que me são caras, pensava. Uma pessoa não pode passar a vida em vão, sem deixar nada a ninguém, sem um legado, a não ser o da miséria da espécie, que a esse todos têm acesso.
Chegava a se sentir feliz imaginando o dia de sua morte, com a família a usufruir as riquezas. E o tal não demorou. Um acidente com o ônibus em que ia ao trabalho foi suficiente para lhe pôr fim à existência e à de uns quantos usuários do transporte.
Depois do enterro, já em casa, os irmãos arrumavam as poucas e puídas peças de roupa, guardavam sapatos, produtos de maquilagem, quando um deles encontrou no guarda-roupa a caixa do tesouro. Na parte de cima, a caneta: “Aos meus”. Chamou os outros, juntaram-se para ver a novidade.
Aberta a caixa, que desprendia um cheiro de tabaco envelhecido, os irmãos encontraram, entre vários cigarros soltos pela peça, já com o papel amarelecido e o filtro murcho, pedras coloridas, pedaços de vidro e acrílico, rolhas de cortiça e um papelinho com as bordas carcomidas onde se lia: "...eu ainda a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei*".
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*José Saramago, in As Pequenas Memórias
8 comentários:
Lindo, lindo.
POdes desenvolver um pouco essa história de "eu ainda a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei"?
Posso desenvolver, mas clara está (como diria Saramago), não está?
Assim, clara está, pero não transparente... rs
Eu diria que está cristalino. É lógico que se nunca caí de um cavalo posso sofrer igualmente seus efeitos. Do cavalo e da queda. E dos pedaços de cigarro entres cacos de vidros e pedrinhas brilhantes. na verdade, na verdade acho que já andei caindo de vários cavalos que nunca montei. Quem sabe? Talvez um dia eu tenha a coragem de montar um corcel negro e talvez tropeçar em estrelas e cair como um bêbado equilibrista...
A frase tocou-me porque a interpretei como expressão intensa da não-realização. Deseja-se tanto algo, que se quer inclusive o sofrimento que ele traria. Esse sofrimento é intensificado: a dor causada pelo ato que não se cometeu é um espelho (uma transposição, na verdade) da verdadeira dor, que é a de não tê-lo vivido.
A dor da não-realização é tão grande que se pode sentir até os efeitos do que aquilo que não aconteceu (mas que se desejou intensamente) poderia causar.
A propósito, no texto do Saramago, o cavalo existiu, a montagem e a queda não. Quando menino, seu tio nunca o deixou montar seu cavalo, mas pôs, alegremente, uma menina rica e mimada sobre o animal, levando-a a passear. Até os 70 anos (quando escreveu Pequenas Memórias), ele se ressente de ter sido preterido. E arremata: “Por fora não se nota, mas a alma anda-me a coxear há setenta anos.”
Por fim, só para distinguir: não vejo aqui a idéia do arrependimento por não ter feito algo, por ter deixado de fazer. É diferente. Aqui, não se discute a pusilanimidade, a covardia, não é o caso. A idéia que percebo na frase é a do ápice da não-realização: sofre-se o sofrimento causado por aquilo que não se viveu, que não se pôde viver, por forças externas à própria vontade, mas se sofre tão intensamente que se sentem as dores que ele poderia ter causado, caso tivesse sido vivido. Isso dói mais, acho, sei lá, também acho que não bato bem da bola, mas ninguém me presta atenção.
gente!!! Que belíssima interpretação Ana! Gostei demais. Achei demasiado enigmático também, mas parece que essa é a preciosidade deixada. Confesso que a minha interpretação imediata foi simples e de um retorno besta ao início do texto, a idade.
Sente as dores, e estas não tem justificativa, ou se assemelham à algo mais sublime que à idade, o cavalgar. O envelhecer e o morrer são barrados de conseguirem um sentido em si, e por isso, o sentido está sempre mais além, nos dependentes no futuro, ou do cavalo, no passado. Mas a luta é sempre inglória, o cavalo não existiu, no entanto, e isso é tão bonito, é isso que se deixa, uma caixinha vazia, ou quase.
: )
retificação: não os dependentes, mas os descendentes, ops! Freud explica. rs.
E NO cavalo.
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