terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Trechos de um conto

“Hoje gostaria apenas de deixar de existir. Observe que não quero a morte com seus funerais e lutos. Desejo a inexistência. Desejo a desintegração, não a decomposição. O corpo se desmaterializando até apagar o último vestígio, a consciência ou qualquer outra coisa que se constitua para além do perceptível pelos sentidos. Não se trata de inconsciência, pois nesse caso pode-se admitir a possibilidade de um passado consciente. Desejo a mais pura ausência. Aquela que não se sente, por nunca ter sido conhecida como presença. Talvez um ou outro perceba, mas logo será como um sonho. Até que isso também se dissolva. – Sumiu no ar. – O quê? – Não sei. Foi só uma sensação. Passou. Meu único grande desejo. Nada de cinzas. Sem pó para ao pó retornar. Sem transformação. Sem Samsara. Sem medo, desespero, negação, isolamento, raiva, barganha, depressão, aceitação ou esperança. Um ir que volte apagando o vir até o momento presente e concretize um nunca ter existido”.
Era essa mesma sensação que tivera ainda jovem. Votava da faculdade e precisava andar alguns quilômetros do ponto de ônibus até sua casa. Nascera em uma cidade de clima quente, mas nunca se acostumara com o calor. Sua pele, muito clara e fina, ressentia-se do sol e da secura que se instalava na região ao longo de seis meses. Quase não transpirava. Sua face ficava vermelha, a nuca e o pescoço empolados.
Não era bonita nem feia. Cabelos lisos e finos. Traços ordinários em um rosto oval. Uma vez lera que era esse o formato de rosto comum às históricas amantes e concubinas. Ficara com isso na memória, embora não acreditasse que a História se desse ao trabalho de registrar alguma importante amante.
Sentia vontade de sentar-se no meio-fio e deixar de existir. Derreteria até ser uma poça que depois evaporaria. Sentia um calor ardido, como se uma lâmina muito fina penetrasse em sua carne. Não havia muitas árvores no caminho.
Lembrava-se da horrorosa aula de piano. Odiava, em especial, as aulas de improvisação. Não dominava as regras da harmonia tonal. Não conhecia nada de contraponto e a percepção musical parecia-lhe ainda obra de um espírito santo em que tinha dúvidas se acreditava. Pensava na figura patética, vista em um livro de história da música ocidental, de uma pomba ao lado do ouvido de um Papa. Amava especialmente as aulas de história e planejava aprofundar os estudos sobre drama litúrgico.
Lembrou-se novamente do exercício que deveria ter preparado para a Dra. Professora Pianista que lhe encomendara um improviso sobre alguns temas insossos.
Alguns a tinham por esnobe, outros por tímida, a maioria não percebia sua existência, o que era sempre um alívio. Sentia-se sempre deslocada e procurava falar o mínimo possível. Tinha uma forte impressão de que quase tudo que falava era absolutamente desnecessário ou era uma grande tolice e, nesse caso, igualmente desnecessário. Com o tempo aprendeu um pouco sobre teatro. O que tornou possível conversar com estranhos. Imaginava um roteiro e conseguia controlar a vontade imensa de desaparecer.
Ao sair da avenida, virava em um beco fresco. Já não se lembrava mais de deixar de existir. Um dia dera um esplendido buquê à senhora que cuidava das plantas na pequena chácara da esquina. Desde então, ela lhe sorria diariamente, com seus poucos dentes e os lábios murchos, um sorriso franco e amigo. Ganhara as flores na faculdade após as aulas da manhã. O rapaz a esperara durante horas na esperança de reatar o namoro. Sentiu um cansaço imenso ao vê-lo. Uma descrença que lhe parecia quase tão antiga quanto a areia do cerrado.
Aquele trecho do bairro tinha sido invadido. Originalmente, deveria fazer parte do cinturão verde da cidade. As famílias vindas do interior ou de outras regiões do país foram se ajeitando por lá enquanto não chegava a água encanada, o esgoto, o asfalto, a iluminação pública. Depois que tudo chegou, vieram também os impostos e as taxas. A área foi regulamentada, mas seu traçado era irregular devido aos lotes de diferentes tamanhos e formatos entre becos e vielas. E os mais pobres foram para mais distante. E os menos pobres abriram pequenos botecos, armazéns, oficinas de conserto de móveis, lojinhas de artesanato que depois foram comprados por empresas maiores, até que não se encontrasse mais muitos dos antigos moradores.
...
Andou fazendo uma coisa e outra. Era arquiteto de formação, mas passou boa parte de sua vida na administração pública. A depressão o assombrou uma meia dúzia de vezes. Estava em seu terceiro casamento e no quinto herdeiro. Conheceu a guria vendendo ingressos de festas em um boteco tradicional da cidade. Calça preta, camiseta cavada preta, botas pretas de salto largo, maquiagem escura, cabelos curtos com gel, ingressos em uma mão e uma quase vazia garrafa de conhaque na outra. Bêbada, continuava ereta e com o olhar arrogante. Sentou a seu lado no banco comprido de madeira. Puxou conversa. Conhecia um e outro à mesa. Desfez-se dos ingressos e despediu-se ao mesmo tempo em que bebia mais um gole do conhaque.
Ele a viu no parque alguns dias depois. Demorou a reconhecer. Lia sentada como se meditasse. O cabelo sem gel era tão fino e solto que jamais se despenteava. O vestido verde de pequenas flores exageradamente largo, comprido e rodado criava a impressão de que seu pescoço e braços saiam da tenda de um pequeno circo. Sorriu discretamente pensando que seria bom brincar naquela tenda. Sem nenhum aviso prévio olhou para ele e soltou: “Palhaço”. Transaram no final de semana seguinte depois de uma festa trance, várias doses de tequila e latas de cerveja.

9 comentários:

Esperando Godot... disse...

gostei! pra mim, os trechos já bastam... não penso em me relacionar com um arquiteto.

Caetana disse...

rsc rsc rsc
Feitos de fama, deitam na cama. Podem ser bons de curvas ou de retas.
Alguns gostam dos arqui outros das tetas.
Eu prefiro os trocadilhos infames.
(lembrei-me do Molusco)

Lidia disse...

que coisa mais auto-biográfica!

Ana Silva disse...

Caetana inexistente com vontade de inexistir.

Esperando Godot... disse...

Entre famas e camas, acredito que a lama seja o destino de muitos. Mas não sejamos tão cruéis com nossos amigos porcos...

Anônimo disse...

Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Não somos nada. Nunca seremos nada. Não podemos querer ser nada. À parte isso, os sonhos ainda não são taxados.

Jaana disse...

Ana, ROUBOU as palavras da minha boca (ou dos dedos!)!!!

Caetana disse...

Inexisto logo insisto.

Unknown disse...

tbm passei por aqui! Pssado com a caspacidade de criação do inexistente! Passado ...