sábado, 20 de novembro de 2010

Nasce Cátia K.

Diante do verde deslumbrante das águas do litoral natalense, Cátia K. sentia o vento nos cabelos e observava o namorado, Fred M. Neto, um jovem engenheiro eletrônico natural de São Paulo. Enquanto contemplava os músculos do rapaz de 1,90m de altura, com a pele escura brilhando de suor sob o sol equatoriano da capital potiguar, a bela morena lembrava-se de sua própria história.

Cátia K. nasceu numa família de músicos. O pai tocou violão com João Donato em 1964, no Beco das Garrafas, e deixou a música para entrar no mercado financeiro. Tornou-se milionário. Nos fins de semana, em sua casa de campo, para a família e os amigos mais chegados, sempre mostrava a primeira versão de “O pato”, de João Gilberto. Repetia, exultante, ao final de cada execução: "Viram? É bem diferente daquela que todos conhecem!" Nessa hora, a mãe servia mais bebida.

A mulher também teve seu passado musical. Participou de um momento importante da MPB. Enquanto Elis Regina gritava “Arrastão”, a mãe de Cátia K. e mais duas backing vocals, ou cantoras de apoio – como gostariam Tinhorão e Aldo Rebelo –, seguravam o resto da canção. Depois disso, também participou de discos de Emilinha Borba, Doris Monteiro e, vejam só, Chico Buarque – ouvidos atentos podem perceber o seu canto soprano soterrado na mixagem de "A banda".

O encontro dos dois aconteceu numa noitada no fim de 1967. Nunca deram detalhes sobre aquela noite. Cátia descobriu que foi uma reunião liberal, bem à moda da época. Ela sempre pensou que festinhas em que ninguém é de ninguém nunca renderam lares burgueses, mas sua família era prova contrária. Nasceu muitos anos depois da idílica orgia protagonizada pelos progenitores.

Por causa dos pais, sabia tudo sobre João Gilberto, inclusive suas músicas. Percebia a diferença entre lá sétima maior sustenido e sol em ré menor na quarta-feira de cinzas. Também entendia porque Nara resolvera subir o morro e resgatar velhos sambistas negros. Mais de uma vez ouviu em casa: "O motivo não era musical."

Não foi dos pais, porém, que lhe vieram as grandes influências. A governanta Madalena del Puentes Saracuja, nascida na Argentina e criada em Monte Carlo, com passagens por Cingapura, Pedro Juan Caballero e Nova Andradina, marcou decisivamente seu contato com as melodias, ritmos e harmonias. Profissional de respeito, já era governanta no período em que Cátia nasceu. Detalhista, de relacionamento seco e preciso com outros empregados, mostrou à bela menina obras de Chopin, Bartok, Wagner, Puccini, Copeland e Damião Experiença. As sessões musicais eram secretas. Ninguém a elas tinha acesso, somente as duas desfrutavam do prazer sonoro, mesclado aos toques que prolongavam fisicamente o deleite musical que a experiente senhora apresentava a Cátia K.

A governanta também tentara a carreira musical. Não gostava de falar de seu passado. A menina descobrira que suas investidas foram no canto erudito, e Maria Callas era culpada por seu insucesso. Mas não foi de sua boca que ouvira isso. Os detalhes juntaram-se na perspicácia de Cátia, atenta às pistas que a empregada deixara ao longo dos anos. Callas nunca entrava numa sessão de audição de divas da ópera que Madalena organizava. Na única vez que se ouviu seu canto no quarto, a argentina tirou o disco da vitrola e o jogou contra a parede, espalhando cacos de vinil pelo aposento. “Outro disco na capa errada”, explicou.

Enlevada, Cátia K. voltou à paisagem paradisíaca que a cercava, lembrando-se de que um dos motivos que fizeram seu pai contratar Madalena fora o zelo com os discos, primeiramente os de vinil, depois, os CDs, que não podiam estar fora de capa, muito menos com poeira ou marcas de dedos, o que o deixava possesso. Não viveu para o MP10.

Cátia K. virou-se para o namorado: “Amor, vamos para o hotel? Quero uma ducha fria, uma salada de rúcula e uma massagem completa. Precisamos também terminar os cálculos para o próximo trabalho." Fred M. sorriu.

Composição, criação e argumento: Oscar Rocha
Colaboração: Alfredo Andrade de Moraes
Pai de Cátia K. inspirado em Jefferson Contar
Adaptação e texto: Ana Silva

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Reminiscências

Abrem-se as cortinas. Entre em cena um grupo de pessoas em tumulto, vozes, gritos e movimentos bruscos - brutos. Mãos na parede, revista agressiva, apelação. Aparece a mordaça. Um foco de luz, slides de fragamentos, diversos textos. Retratos de um tempo em pretos e brancos. As vozes em coro entoam "vem, vamos embora, que esperar não é saber..." João Goulart em bronze. ComunismoXCapitalismo. Revolução, contra. Castelo Branco. Figueiredo. Contradições, polêmicas, transformações. Repressão e transgressão. Vozes d euma sociedade pensante. Fecham-se as cortinas.

domingo, 14 de novembro de 2010

Autobiografemas

A escrita é talvez a mais dolorosa tarefa solicitada aos estudantes nas suas formações profissionais. Particularmene, posso afirmar isso por ter sempre solicitado aos meus alunos que registrassem algo por escrito e, como retorno, ouvido gemidos, bufadas e interjeições diversas. Muito dificilmente consegui escapar dos protestos, dos pedidos de cancelamento, de adiamento de prazos de entrega, das milhares de confirmações se era para fazer mesmo e até das lágrimas. Como trabalhei basicamente em licenciaturas e cursos de pedagogia, não tive pudor de "subir nas tamancas " e "fazer uma cena" cada uma das trocentas vezes que recebi protestos contra a obrigação de escrever. Minha pergunta ainda é: como podemos formar cidadãos alfabetizados se nós mesmos, educadores, não formos pessoas que escrevem? Que professores somos nós, se não escrevemos? PPode parecer ingênuo, mas continuo acreditando que todos temos que ter momentos de escrita e reflexão sobre como escrever mais e escrever melhor. Para mim, é um ato de cidadania.
Entretanto, o problema maior é encontrar algo sobre o que escrever. Algo que seja significativo e relevante. A escrita exige muito exercício e assunto.
Minha sugestão tem sido a de se exercitar a escrita pela autobiografia. Primeiramente por ser o único texto realmente autêntico que podemos escrever - não há ainda como alguém copiar a própria vida. Depois, porque é um exercício rico em possibilidades didáticas. Da autobiografia pode se derivar o memorial, exigido na academia; pode virar conteúdo de disciplinas na escola, pois permite aos professores conheceram memlhor seus alunos (faixa etária, origem, trajetória escolar, situação econômica, realções sociasi, sonhos , angustias, desejos, crenças etc.).
A leitura de autobiografias em sala de aula tem o efeito de tornar os colegas mais próximos. Os estudantes percebem que convivem com estranhos, ao mesmo tempo em que têm muita coisa em comum. A leitura coletiva, devolvida para as turmas com ou sem identificação dos autores - conforme eles escolherem, proporciona o entendimento de que a turma forma uma amostra da sociedade. Dos dados fornecidos pelas autobiografias podemos inferir situações e conjecturas nacionais e internacionais. Ao perceber o grupo como um todo, podemos entender o movimento das pessoas em busca de mais e melhor educação. Enfim a escrita da autobiografia é um processo que encoraja os estudantes a se conhecerem e se inserirem melhor nos grupos em que convivem.
O conteúdo das autobiografias são a "bagagem" que os estudantes naturalmente trazem para a escola. Com elas já trabalhei: estatísticas, mapas, revisão histórica, concepções de educação, história do brasil, uso da linguagem, as facilidades e dificuldades para produção de escrita, tipos de escolarização e muitos outros temas.
Você já tentou escrever sua autobiografia? Essa é minha sugestão para o próximo feriado.
Me mostra a tua, que eu te mostro a minha!

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

da Jaana

Versos à boca da noite

Carlos Drummond de Andrade

(...)"Mas vêm o tempo e a idéia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.
E as memórias escorrem do pescoço,

do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo

trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi"
(…)

As memórias, por algum motivo, voltaram e tomaram-me por completo. Mas não parecem memórias. É como se fossem vida vivida pela primeira vez. Não sei onde estava quando a minha vida aconteceu. Parte das memórias, por algum motivo, mandou-me olhar o nome de quem me escreveu nos últimos tempos, o nome de quem não me respondeu, os nomes. Somente hoje. Mais de um ano e somente agora a minha memória conseguiu me falar. Voltar a alguns emails do passado recente é como vivê-los pela primeira vez. Parece impossível que algumas constatações sejam tão óbvias. Senti falta de dois nomes no quintal, que quase nunca visitei, e agora percebo que nunca deveria ter sentido falta de duas pessoas. Isso me ajudou a entender outras coisas. Mas ainda tenho tantas dúvidas. As respostas aparentemente me foram dadas, palavra porpalavra, mas eu não escutei. Verdadeiras? Os diálogos ilógicos e absurdos tinham uma lógica que me fugia. De tanto revivê-los às vezes tenho dúvidas de quais aconteceram ou não. Algumas verdades ainda parecem parte da “encenação para me ajudar”. Verdades? O cansaço mental e físico que me tomou por completo no passado voltou. Mas desta vez não consegui fugir de pensar. Desculpei a quem nunca deveria ter desculpado (!?). Nunca pedi desculpas a quem deveria ter pedido (!?). Mais de um ano sem pensar nesse passado e ele voltou com tanta força. Agora, ainda tantas dúvidas. Umas poucas certezas. Mas pelo menos as minhas memórias vieram conversar comigo.